sexta-feira, 4 de abril de 2014

É possível ter Jesus como amigo porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado



Na quarta pregação da Quaresma Pe. Cantalamessa fala do dogma cristológico e do desejo de Jesus de ser nosso amigo
Por Laura Guadalupe

ROMA, 04 de Abril de 2014 (Zenit.org) -
Existem várias vias de acesso ao mistério de Cristo. Padre Raniero Cantalamessa, na sua quarta pregação de Quaresma, continua o caminho traçado da Tradição da Igreja: o “dogma cristológico”, compreendido como “as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente no de Calcedônia”. Em definitiva tais verdades, continua o Capuchinho, “se reduzem aos seguintes três pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa”.
O pregador da Casa Pontifícia escolhe São Leão Magno para entrar nas profundezas do mistério cristológico. De fato, ele foi o papa reinante no momento em que a teologia latina e aquela grega se encontraram. São Leão Magno não se limitou a transmitir a fórmula de Tertulliano, que tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem”. Foi mais longe, adaptando a fórmula “aos problemas que surgiram nesse meio tempo, entre o concílio de Éfeso do 431 àquele de Calcedônia do 451”.
Padre Cantalamessa observa que o pensamento cristológico do Papa Leão, exposto no Tomus ad Flavianum, encontra-se no cerne da definição de Calcedônia. Cita, portanto, o ponto em que se declara: "Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase”
Na fórmula de Calcedônia, diz o capuchinho, "repousa toda a doutrina cristã da salvação”. De fato, "só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele mesmo é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal”, tanto que, como se canta no Adoro te devote, “somente uma gota do sangue que derramou salva o mundo todo do pecado”. É este um tema sobre o qual o oriente e o ocidente são unânimes.
Santo Anselmo, entre os latinos, e Cabasilas, entre os ortodoxos, apresentam poucas diferenças entre eles quando escrevem que, antes de Cristo, o homem tinha contraído uma dívida infinita com o pecado. Tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia porque era escravo exatamente daquele que deveria vencer. Por outro lado Deus podia expiar o pecado e vencer, mas não tinha que fazê-lo porque não era ele o devedor. Portanto, continua padre Cantalamessa, “era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que tinha que lutar e aquele que podia vencer”, e é isso que aconteceu com Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa”.
Estas certezas a respeito de Cristo, no entanto, ao longo dos últimos dois séculos foram colocadas em discussões por estudiosos que, a partir de Strauss, procuraram classifica-las como “puras invenções dos teólogos”, com a finalidade de levar adiante uma tese que separava o Cristo do dogma do Jesus de Nazaré da história. Eles diziam que “para conhecer o verdadeiro Jesus da história” era preciso “prescindir da fé nele posterior à Páscoa”.
O pregador da Casa Pontifícia fala das "reconstruções imaginativas" sobre a figura de Jesus proliferadas em um contexto semelhante e adverte: “Não é possível mais em boa fé escrever “pesquisas sobre Jesus” que pretendem ser ‘históricas’, mas prescindem, ou melhor, excluem do do ponto de partida, a fé nele”. De tal forma, continua o capuchinho, há uma mudança em ato que leva o nome de James D.G. Dunn, um dos maiores estudiosos vivos do Novo Testamento. No livro intitulado “Mudar perspectiva sobre Jesus”, Dunn erradica os pressupostos daquela tese que contrapõe o Cristo da fé e o Jesus histórico, citando, entre as várias argumentações, o fato de que “a fé começou antes da Páscoa”, quando os discípulos começaram a seguir a Jesus porque acreditavam nele.. Embora imperfeita, se tratava ainda sempre de fé.
Cristo é a base de tudo no Cristianismo, então Pe. Cantalamessa se pergunta: "Se não se tem ideias claras sobre quem é Jesus, que força terá a nossa evangelização?”. Nem a história nem muito menos o dogma conseguem dar-nos o Cristo da realidade, porque a história, transmitida pelos evangelhos, leva a um Jesus “lembrado”, ou até mesmo mediado pela memória dos discípulos, enquanto que o dogma pode levar a uma Jesus “definido”, “formulado”, que difere da fórmula de Calcedônia como a água que bebemos difere da fórmula química H2O.
Como chegar, então, ao “Jesus real” que está “além da história e por trás da definição”? Por meio do Espírito Santo que, lembra o pregador pontifício, permite um conhecimento “imediato” de Cristo e é “a única mediação não mediata’ entre nós e Jesus, no sentido de que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da sua mesma natureza”. E, continua, “é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito de conhecer o verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes resulta em uma iluminação repentina de todo o trabalho e pessoa de Cristo".
Padre Cantalamessa apela, portanto, à ajuda do Espírito Santo para “despertar” o dogma. Do triângulo de São Leão Magno e Calcedônia, pelo qual Jesus Cristo é “uma pessoa em duas naturezas”, o capuchinho toma em consideração o terceiro elemento. O uso moderno do conceito de “pessoa” atribuiu à palavra de origem latina um significado subjetivo e relacional, pelo qual indica “o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu”. A fórmula latina “uma pessoa” apareceu portanto, mais fecunda com relação à correspondente grega “uma hipóstase”, porque esta última pode dizer-se de cada objeto existente, enquanto que “pessoa” pode referir-se somente a um ser humano e, por analogia, divino.
Aplicando o discurso para o relacionamento com Cristo, padre Cantalamessa explica que “dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe com intimidade como ele a mim. É preciso passar continuamente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não é possível conversar”. O pregador da Casa Pontifícia introduz portanto um elemento essencial no seu discurso, e afirma que “é possível ter Jesus por amigo, porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está do meu lado, posso relacionar-me com ele como dois seres vivos o fazem, um presente a um presente. Não com o meu corpo e nem mesmo somente com a fantasia, mas ‘no Espírito’ que é também infinitamente mais íntimo e real do que ambos”.
Infelizmente, considera o capuchinho, é raro pensar em Jesus nestes termos, ou seja, como um amigo, um confidente. Esquecemos que, sendo “verdadeiro homem”, Ele “possui em sumo grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento conosco”, não chamando-nos mais servos, mas amigos (cf. Jo 15, 15).
Na sua vida terrena, Cristo estabeleceu relações de verdadeira amizade somente com alguns, embora amasse a todos indistintamente. Agora, como ressuscitado, “não está mais sujeito às limitações da carne” mas, continua padre Cantalamessa, “oferece a cada homem e a cada mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra”. A quarta pregação da Quaresma conclui, portanto, com o desejo de que o Espírito Santo “nos ajude a acolher com maravilha e alegria esta possibilidade que preenche a vida”.

Caindo no conto do gênero...



Entrevista com Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva, Professor de Teologia Moral
Por Thácio Siqueira

BRASíLIA, 04 de Abril de 2014 (Zenit.org) -
 O Brasil tem protagonizado nas últimas semanas a tentativa de implantação da ideologia do gênero por meio da Votação do Plano Nacional de Educação.
Nessa última quarta-feira houve a terceira tentativa de votação na câmara dos deputados, embora mais uma vez adiada, à causa, dessa vez, de bate-boca e provocação de deputados contra os manifestantes pró-vida e pró-família presentes na sala.
“Muitos têm desviado o foco do debate para temas que não pertencem ao âmbito da ideologia de gênero”, disse à ZENIT o Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva, sacerdote da Diocese de Osasco - SP, pároco da Igreja São Domingos (Osasco), doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Romana da Santa Cruz e professor de Teologia Moral.
Acompanhe a entrevista abaixo:
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ZENIT: Temos visto nas últimas semanas um crescente debate sobre a questão de “gênero” no contexto do Plano Nacional de Educação. Como o sr. avalia estas discussões?
Pe. José Eduardo: Tenho acompanhado de perto os diferentes discursos e percebo que, embora a questão esteja cada dia mais clara, muitos têm desviado o foco do debate para temas que não pertencem ao âmbito da ideologia de gênero, talvez até como um recurso para não enfrentarem um tema tão absurdo. Trata-se de um deslocamento para sabotar o discurso.
ZENIT: Em que consiste, então, a “ideologia de gênero”?
Pe. José Eduardo: Sintetizando em poucas palavras, a ideologia de gênero consiste no esvaziamento jurídico do conceito de homem e de mulher. A teoria é bastante complicada, e uma excelente explicação desta se encontra no documento “Agenda de gênero”. Contudo, a ideia é clara: eles afirmam que o sexo biológico é apenas um dado corporal de cuja ditadura nos devemos libertar pela composição arbitrária de um gênero.
ZENIT: Quais as consequências disso?
Pe. José Eduardo: As consequências são as piores possíveis! Conferindo status jurídico à chamada “identidade de gênero” não há mais sentido falar em “homem” e “mulher”; falar-se-ia apenas de “gênero”, ou seja, a identidade que cada um criaria para si.
Portanto, não haveria sentido em falar de casamento entre um “homem” e uma “mulher”, já que são variáveis totalmente indefinidas.
Mas, do mesmo modo, não haveria mais sentido falar em “homossexual”, pois a homossexualidade consiste, por exemplo, num “homem” relacionar-se sexualmente com outro “homem”. Todavia, para a ideologia de gênero o “homem 1” não é “homem”, nem tampouco o “homem 2” o seria.
ZENIT: Então aqueles que defendem a “ideologia de gênero” em nome dos direitos homossexuais estão equivocados?
Pe. José Eduardo: Exatamente! Eles não percebem que, uma vez aderindo à ideologia de gênero, não haverá sequer motivo em combater à discriminação. Nas leis contra a discriminação, eles querem discriminar alguns que consideram mais discriminados. Contudo, pela ideologia de gênero, não há mais sentido em diferenciar condições e papeis, tudo se vulnerabiliza! Literalmente, eles caíram no conto do gênero.
Para defender a identidade homossexual, estão usando uma ideologia que destrói qualquer identidade sexual e, por isso, também a família, ou qualquer tipo de família, como eles mesmos gostam de dizer.
Em poucas palavras, a ideologia de gênero está para além da heterossexualidade, da homossexualidade, da bissexualidade, da transexualidade, da intersexualidade, da pansexualidade ou de qualquer outra forma de sexualidade que existir. É a pura afirmação de que a pessoa humana é sexualmente indefinida e indefinível.
ZENIT: Então a situação é muito pior do que imaginamos...
Pe. José Eduardo: Sim. As pessoas estão pensando em “gênero” ainda nos termos de uma “identidade sexual”. Há outra lógica em jogo, e é por isso que ninguém se entende.
Para eles, a ideia de “identidade sexual” é apenas um dado físico, corporal. Não implica em nenhuma identidade. Conformar-se com ela seria “sexismo”, segundo a própria nomenclatura deles. A verdadeira identidade é o “gênero”, construído arbitrariamente.
Todavia, este “gênero” não se torna uma categoria coletiva. É totalmente individual e, portanto, indefinível em termos coletivos. Por exemplo, alguém poderia se declarar gay. Para os ideólogos de gênero isso já é uma imposição social, pois a definição de gay seria sempre relativa a uma condição masculina ou feminina mormente estabelecida. Portanto, uma definição relativa a outra, para eles, ditatorial.
Não existiria, tampouco, a transexualidade. Esta se define como a migração de um sexo para outro. Mas, dirão os ideólogos de gênero, quem disse que a pessoa saiu de um sexo, se aquela expressão corporal não exprime a sua identidade construída? Portanto, para eles, não há sequer transexualidade.
Gênero, ao contrário, é autorreferencial, totalmente arbitrário.
Alguém dirá que não há lógica isso. Realmente, a lógica aqui é “ser ilógico”. É o absurdo que ofusca nossa capacidade de entender.
ZENIT: O que dizer, então, de quem defende a ideologia de gênero no âmbito dos direitos feministas?
Pe. José Eduardo: Os ideólogos de gênero, às escondidas, devem rir às pencas das feministas. Como defender as mulheres, se elas não são mulheres?...
ZENIT: Qual seria o objetivo, portanto, da “agenda de gênero”?
Pe. José Eduardo: Como se demonstra no estudo que mencionei, o grande objetivo por trás de todo este absurdo – que, de tão absurdo, é absurdamente difícil de ser explicado – é a pulverização da família com a finalidade do estabelecimento de um caos no qual a pessoa se torne um indivíduo solto, facilmente manipulável. A ideologia de gênero é uma teoria que supõe uma visão totalitarista do mundo.
ZENIT: Como a população está reagindo diante disso?
Pe. José Eduardo: Graças a Deus, milhares de pessoas têm se manifestado, requerendo dos legisladores a extinção completa desta terminologia no Plano Nacional de Educação. Pessoalmente, tenho explicado a muitas pessoas a gravidade da situação nestes termos: 1) querem nos impor uma ideologia absurda pela via legislativa; 2) querem fazê-lo às custas do desconhecimento da população, o que é inadmissível num Estado democrático de direito; 3) e querem utilizar a escola como um laboratório, expondo nossas crianças à desconstrução de sua própria personalidade. E ainda querem que fiquemos calados com isso! Não!, o povo não se calará!
ZENIT: Falando em “Estado democrático de direito” e vendo a manifestação de tantos cristãos, evangélicos e católicos, inclusive de bispos, alguns alegam a laicidade do Estado como desculpa para desprezar os seus argumentos. O que dizer sobre isso?
Pe. José Eduardo: Esta objeção é tão repetitiva que se torna cansativo respondê-la. Numa discussão democrática, não importa se o interlocutor é religioso ou não. O Estado é laico, não laicista, anti-religioso. Seria muito divertido, se não fosse puro preconceito – e às vezes, verdadeiro discurso de ódio anti-religioso –, a insistência com a qual alguns mencionam a Bíblia, os dogmas, os preceitos... como se nós estivéssemos o tempo todo alegando argumentos teológicos. Como se pode ver acima, nossos argumentos aqui são simplesmente filosóficos, racionais. Aliás, são tão racionais a ponto de mostrar o quanto a proposta deles é totalmente irracional, posto que contradizem as sua próprias bandeiras ideológicas..
No final das contas, a única coisa que lhes resta é a rotulação – na audiência de ontem, chamaram aos gritos um deputado de “machista”, em outra ocasião de “patricarcalista” –, mas a rotulação é a arma dos covardes, daqueles que não têm honestidade e liberdade intelectuais. Como digo sempre, nestas discussões, precisamos nos comportar como filósofos, e não como maus advogados, que estão dispostos a negar até as evidências.

As mulheres merecem o direito de continuar sendo as únicas mulheres



Enganam-se os cultores dessa ideologia do gênero irracional que desconsidera a realidade corporal como parte da identidade humana em prejuízo da proteção à mulher.
Por Paulo Vasconcelos Jacobina

BRASíLIA, 04 de Abril de 2014 (Zenit.org) - 
Uma fala que se ouve muito nos meios jurídicos acadêmicos e nas esferas jurídicas estatais é um paradoxo irracional: “o corpo é meu”, dizem alguns ideólogos, e nem a família, nem os religiosos, nem o Estado poderiam dizer a um indivíduo o que fazer com o “seu corpo”.
É um absurdo afirmar que o corpo humano é algo que se relaciona com a própria pessoa humana a partir de uma noção de direito de propriedade. Juridicamente, a frase “meu corpo é meu” não faz sentido. Não há um “eu” fantasmagórico fora do corpo que pudesse se apresentar como titular de um pretenso “direito de propriedade” entre este “eu” e um “corpo” externo a mim e coisificado. Isto é cartesianismo mal compreendido, instrumentalizado a políticas anti-humanitárias.
Se esta visão fosse verdadeira, a pessoa humana seria uma espécie de “fantasma” imaterial que pilota uma “máquina” corporal a ele externa, que seria objeto de uma relação dominial privada. Juridicamente, dizer “meu corpo é meu” significaria dizer que os crimes de lesão corporal, por exemplo, seriam crimes contra o patrimônio, e não contra a pessoa. O homicídio seria equivalente a um furto ou a um roubo, não à destruição da própria pessoa. Mas não é assim: homicídio e lesão corporal são crimes contra a pessoa, não contra o patrimônio.
Não se pode dizer “o corpo é meu”. Pode-se dizer, isto sim, “o corpo sou eu”. O corpo é parte do que a pessoa humana é, da sua identidade, não do que ela tem, da sua propriedade. Embora, é claro, o corpo não esgote a identidade pessoal: é inegável que a dignidade da pessoa humana ultrapassa a dimensão corporal, senão uma pessoa viva teria somente a mesma dignidade de um cadáver. Somos seres corporais, mas não apenas isto.
Por causa disto, a promoção da dignidade da pessoa humana, como dever estatal, jamais pode prescindir da corporalidade como dimensão de identidade. O corpo é digno porque a pessoa é digna. É lícito, portanto, estabelecer que os programas públicos “para a mulher” (como banheiros públicos femininos, vagões de metrô reservados para as mulheres, programas de saúde feminina) excluem de modo necessário e perfeitamente lícito os homens, mesmo aqueles que gostariam de ser mulher mas não são. A recíproca é verdadeira para as políticas dirigidas a homens.
Há, nesta linha, uma circunstância que deve ser especialmente ponderada, no combate à violência sexual contra a mulher. Trata-se de uma recente e, a meu ver, injustificável alteração do Código Penal que, movida pela absurda “ideologia do gênero”, modificou a capitulação do “estupro” para equiparar homens e mulheres como vítimas de crimes sexuais, tornando nosso direito penal cego a certas especificidades corporais que tornam a mulher mais vulnerável, e portanto, merecedora de maior proteção estatal, no particular.
De fato, pela redação original do art. 213 do código penal brasileiro, apenas as mulheres poderiam ser vítimas de estupro, porque a lei dizia assim: “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. O art. 214 do código penal descrevia um outro crime, o “atentado violento ao pudor”, que podia ser praticado indistintamente contra homens e mulheres, descrito assim: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”, e cuja pena prevista era um pouco menor do que a do estupro.
A lei brasileira, em 2009, revogou o art. 214 do Código Penal, e juntou injustificadamente no art. 213 tanto os crimes sexuais cometidos contra homens quanto aqueles cometidos contra mulheres, ignorando as especificidades destas últimas. Ainda que tenha havido um aumento da pena-base, o direito penal brasileiro equiparou a conjunção sexual forçada contra a mulher ao atentado violento ao pudor que pode ser feito contra pessoas de qualquer sexo, deixando de distinguir o que é faticamente diferente, em prejuízo exatamente da especificação da proteção sexual às mulheres.
A alteração feita em 2009 no direito penal, em nome de uma “ideologia do gênero” que considera como injusto e discriminatório distinguir entre aquelas pessoas nascidas no sexo masculino que se consideram mulheres, vestem-se como mulheres e até submetem-se a cirurgia para obter fenótipo de mulher, das mulheres propriamente ditas, foi redutora. E isto em prejuízo das próprias mulheres, com sua identidade indissoluvelmente formada por corpos que lhe dão naturalmente a condição feminina. Tornou o nosso direito mais cego à luta feminina por dignidade e proteção. Primeiro por ignorar que quase a totalidade dos agressores sexuais é de homens. E depois por escamotear que a violência contra a mulher, praticada por um homem, sempre envolve a potencialidade de uma gravidez indesejada, com todos os problemas enormes que isto acarreta, ou mesmo de um dano permanente e irreparável contra o sistema reprodutor feminino, impedindo-a para sempre de ser mãe ou de aleitar. Isto tudo se transformou, com a reforma penal de 2009, num indiferente penal em prejuízo das mulheres.
Homens, mesmo com posturas sexuais alternativas, e independentemente mesmo de até se submeterem eventualmente a cirurgias, continuam a portar genótipo masculino, incapazes portanto de ostentar o maravilhoso corpo feminino; aquele mesmo corpo que integra inseparavelmente a identidade das pessoas de sexo feminino e possibilita às mulheres que, ademais de exibirem as mesmas potencialidades humanas que têm os homens, ostentar ademais um aparelho reprodutor que elas têm por direito próprio e devem se orgulhar de manifestar com exclusividade.
O desvio ideológico latente entre nós, e que se manifestou em 2009 na alteração legislativa do código penal, é tamanho que, em nome de uma “igualdade” que ignora o corpo feminino, deixa de reconhecer a especificidade da violência sexual contra as mulheres, ainda tão forte em nossa cultura. Para não ofender algumas minorias, desprotegeu-se a mulher.
Sem prejuízo, é claro, da eventual proteção específica que quaisquer minorias, sexuais ou não, mereçam também, devidamente adaptada às suas peculiaridades, querer ser mulher não significa poder ser mulher, e não iguala homens a mulheres.. Enganam-se os cultores dessa “ideologia do gênero” irracional que desconsidera a realidade corporal como parte da identidade humana em prejuízo da proteção à mulher. As mulheres merecem, do nosso ordenamento jurídico, o direito de continuar sendo as únicas mulheres.

Milagres de São José de Anchieta



Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, explica as razões da canonização

SãO PAULO, 03 de Abril de 2014 (Zenit.org) - 
Ao saberem da notícia da canonização do Padre José de Anchieta, muitas pessoas perguntarem logo: qual foi o milagre? Por qual milagre ele se tornou santo?
As perguntas não surgem sem motivo, pois a Igreja sempre tem falado que, para a beatificação, é preciso que haja um milagre, acontecido pela intercessão daquele que é beatificado; e, para a canonização, espera-se um novo milagre do bem-aventurado. Desta maneira, a Igreja entende que Deus, o único a realizar milagres, confirma a santidade daqueles que veneramos como “santo”.
A Igreja é muito criteriosa e até severa para dar reconhecimento a um suposto milagre. No caso de Anchieta, houve a confirmação de um milagre antes de sua beatificação. Para a sua proclamação como “santo”, foi dispensada a confirmação de um novo milagre. O Papa pode fazer isso, usando da autoridade que lhe é própria. É verdade que não faltaram testemunhos sobre sinais prodigiosos conseguidos através da intercessão de Anchieta; mas, de modo geral, tais supostos milagres são de difícil verificação, dada a escassez de documentação e de testemunhos.
Aqui se faz oportuna uma reflexão: os santos, assim reconhecidos e proclamados pela Igreja, não se tornam “santos” por causa  de algum milagre; o reconhecimento público e oficial da Igreja supõe, acima de tudo, a vida santa de quem é proclamado “santo”. Por isso mesmo, este ato oficial da Igreja não é dito “santificação”, mas “canonização”, ou seja, inscrição na lista (“cânon”) dos santos reconhecidos pela Igreja. Ninguém se torna “santo” depois da morte; o que conta, é a vida santa e o testemunho de santidade durante esta vida.
Foi o que aconteceu com Anchieta. O papa Francisco reconheceu oficialmente aquilo que se tinha por certo já quando Anchieta faleceu, em 1597: foi um homem santo, um homem de Deus, que se dedicou profundamente à obra do Evangelho, no seguimento de Jesus; homem de extraordinária fé, esperança e caridade, ele viveu conforme as bem-aventuranças, cultivou a misericórdia, a oração e a comunhão com Deus; foi zeloso da glória de Deus e do bem do próximo, gastou sua vida como missionário; foi um grande cristão, um sacerdote dedicado, um filho amoroso da Igreja. E isso foi testemunhado pelos que o conheceram em vida e, sem interrupção, confirmado pela Igreja, depois de sua morte, até nossos dias. Falta alguma coisa para ser santo?!
As pessoas gostam de saber: para qual “graça” o Santo deve ser invocado? A Igreja ensina que, acima de tudo, os santos devem ser imitados; eles são testemunhas de vida cristã, excelsos discípulos de Jesus. Em nossos dias, devemos pedir a intercessão de São José de Anchieta para conseguir aquelas “graças” que mais o caracterizaram em vida: ser pessoas de fé viva, apaixonados por Deus, pela Igreja e sua missão; ser missionários dedicados e capazes até de sacrifícios pela causa do Evangelho; ser catequistas criativos e interessados em comunicar aos outros os tesouros do Reino de Deus; ajudar outros a se aproximarem de Cristo vivo, a chegarem à alegria de crer; ser respeitosos para com todos, promotores da justiça e da defesa dos mais fracos e vulneráveis; ser pacificadores, sem deixar que a violência imponha a sua lei...
Quantos “milagres” podemos pedir a Deus pela interessão de São José de Anchieta! Sem esquecer que ele veio ao Brasil ainda jovem, com 19 anos de idade, com um desejo imenso de “levar irmãos para Cristo” e de promover em tudo a maior glória de Deus (“ad maiorem Dei gloriam”)... Nenhum sacrifício ou renúncia lhe pareceram demasiados para fazer isso. Ainda hoje, Anchieta pode ser uma inspiração para muitos jovens!
Nosso tempo desafia-nos a sermos missionários e isso requer “conversão pessoal e pastoral”. O papa Francisco tem dito que precisamos ser um “povo em missão” e uma Igreja “em saída”,  indo aos irmãos que vivem nas “periferias” de todos os tipos. Este é mais um “milagre” importante a ser pedido através do missionário Anchieta, que largou tudo e foi ao encontro daqueles que viviam nas periferias do mundo, na América...
Oh, sim, valei-nos, São José de Anchieta! Olhai para o nosso Brasil, o “vosso” Brasil! Pedi essas graças para nós! Precisamos muito desses milagres

Homilia de Francisco: temos que rezar como quem fala com um amigo



O Santo Padre nos convida a rezar como Moisés, falando cara a cara com Deus, e nos lembra que a oração muda o nosso coração
Por Redacao

CIDADE DO VATICANO, 03 de Abril de 2014 (Zenit.org) - A oração é uma luta com Deus, travada com liberdade e insistência, como um diálogo sincero com um amigo. Este é o tipo de oração que muda o nosso coração, porque nos faz saber melhor como Deus é realmente. Esta foi a ideia central do Santo Padre na homilia desta quinta-feira, na missa celebrada na Casa Santa Marta.
Francisco recordou o diálogo de Moisés no monte Sinai, quando Deus quis castigar o seu povo por ter criado um ídolo: o bezerro de ouro. E Moisés rezou com força para que o Senhor “repensasse”. "Esta oração é uma verdadeira luta com Deus. E Moisés fala livremente diante do Senhor e nos ensina como rezar, sem medo, livremente, e com insistência. Moisés insiste. É valente. A oração também tem que ser um 'negociar com Deus', com 'argumentações'", afirmou o papa. Moisés acaba convencendo Deus: a leitura nos diz que "o Senhor se arrependeu do mal com que tinha ameaçado o seu povo". Mas, perguntou o Santo Padre, "quem foi que mudou mesmo? Nosso Senhor mudou? Eu acho que não".
Francisco explicou: "Quem mudou foi Moisés, porque Moisés achava que Deus ia fazer aquilo, que Deus ia destruir o seu povo, e ele procura, na sua memória, a lembrança do quanto Deus tinha sido bom com o seu povo, como o tinha livrado da escravidão no Egito e levado para uma terra prometida. E, com esses argumentos, ele tenta ‘convencer’ a Deus, mas, neste processo de reflexão, é ele quem reencontra a memória do seu povo, é ele quem encontra a misericórdia de Deus. E Moisés, que tinha medo, medo que Deus fizesse aquilo, no fim desce do monte com algo grandioso no coração: nosso Deus é misericordioso! Deus sabe perdoar. Deus pode ‘voltar atrás’ nas suas decisões. É um Pai".
Francisco observou que Moisés sabia de tudo isso, "mas sabia mais ou menos obscuramente; e na oração, ele reencontra [essa sabedoria]. É isto o que a oração faz em nós: ela muda o nosso coração".
O Santo Padre completou: "A oração muda o nosso coração. Ela nos faz entender melhor como é o nosso Deus. Mas por isso é importante falar com Ele não com palavras vazias; Jesus diz: 'não como fazem os pagãos'. Não, não. Falar com a realidade: 'Olha, Senhor, eu tenho este problema, na família, com o meu filho, com isso, com aquilo... O que é que eu posso fazer? Mas olha, você não pode me deixar assim'! Isto é oração! Mas essa oração exige muito tempo! Sim, ela exige tempo".
Ela exige o tempo de que se precisa para conhecer melhor a Deus, o tempo necessário para conhecer melhor um amigo. E a bíblia nos diz que Moisés rezava a Deus do jeito que um amigo fala com outro. "A bíblia diz que Moisés falava com o Senhor cara a cara, como um amigo. É assim que a oração tem que ser: livre, insistente, com argumentações. E também repreendendo um pouco a Deus: 'Mas você me prometeu isto, Senhor, e isto você não fez....'. Desse jeito mesmo, do jeito que se fala com um amigo. Abrir o coração nessa oração. Moisés desceu do monte revigorado.. 'Eu conheci melhor o Senhor', e, com essa força que a oração tinha lhe dado, ele retoma o seu trabalho de levar o povo rumo à terra prometida. Porque a oração revigora, revigora. Nosso Senhor dá a graça para todos, porque rezar é uma graça".
Para terminar, o papa disse que em cada oração está presente o Espírito Santo: não podemos rezar sem Ele, porque é Ele quem reza em nós, é Ele quem nos ensina a dizer “Deus Pai”. Por isso, o papa Francisco nos convidou a pedir ao Espírito Santo que "Ele nos ensine a rezar, assim como Moisés rezou: a negociar com Deus, com liberdade de espírito e coragem. Que o Espírito Santo, que está sempre presente em nossa oração, nos conduza por esse caminho".

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Por novos tempos, com liberdade e democracia



Texto da CNBB alerta as gerações pós-ditadura para que se mantenham atuantes na defesa do Estado Democrático de Direito

BRASíLIA, 02 de Abril de 2014 (Zenit.org) - O Conselho Episcopal Pastoral (Consep) aprovou na terça-feira, 1º de abril, declaração sobre os 50 anos do golpe civil-militar, intitulada “Por tempos novos, com liberdade e democracia”.. O texto, assinado pela Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), alerta as “gerações pós-ditadura para que se mantenham atuantes na defesa do Estado Democrático de Direito”. 
 Leia, na íntegra, a declaração da CNBB.
DECLARAÇÃO
POR TEMPOS NOVOS, COM LIBERDADE E DEMOCRACIA
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB faz memória, neste 1º de abril, com todo o Brasil, dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964, que levou o país a viver um dos períodos mais sombrios de sua história. Recontar os tempos do regime de exceção faz sentido enquanto nos leva a perceber o erro histórico do golpe, a admitir que nem tudo foi devidamente reparado e a alertar as gerações pós-ditadura para que se mantenham atuantes na defesa do Estado Democrático de Direito.
Se é verdade que, no início, setores da Igreja apoiaram as movimentações que resultaram na chamada “revolução” com vistas a combater o comunismo, também é verdade que a Igreja não se omitiu diante da repressão tão logo constatou que os métodos usados pelos novos detentores do poder não respeitavam a dignidade da pessoa humana e seus direitos.
Estabeleceu-se uma espiral da violência com a prática da tortura, o cerceamento da liberdade de expressão, a censura à imprensa, a cassação de políticos; instalaram-se o medo e o terror. Em nome do progresso, que não se realizou, povos foram expulsos de suas terras e outros até dizimados. Ate hoje há mortos que não foram sepultados por seus familiares.
Ainda paira muita sombra a encobrir a verdade sobre os 21 anos que fizeram do Brasil o país da dor e da lágrima. Ajuda-nos a pagar essa dívida histórica com as vítimas do regime a Comissão da Verdade que tem por objetivo trazer à luz, sem revanchismo nem vingança o que insiste em ficar escondido nos porões da ditadura.
Graças a muitos que acreditaram e lutaram pela redemocratização do país, alguns com o sacrifício da própria vida, hoje vivemos tempos novos. Respiramos os ares da liberdade e da democracia. Porém, é necessário superar a injustiça, a desigualdade social, a violência, a corrupção, o descrédito com a política, o desrespeito aos direitos humanos, a tortura... A democracia exige participação constante de todos.
Fiel à sua missão evangelizadora, a CNBB reafirma seu compromisso com a defesa de uma democracia participativa e com justiça social para todos. Conclama a sociedade brasileira a ser protagonista de uma nova história, livre do medo e forte na esperança.
Nossa Senhora Aparecida, padroeira de nossa Pátria, nos projeta com seu manto, ilumine nossas mentes e corações a fim de que trilhemos somente os caminhos da paz, da justiça e do amor.

Cardeal Raymundo Damasceno Assis
Arcebispo de Aparecida
Presidente da CNBB
Dom José Belisário da Silva, OFM
Arcebispo de São Luís do Maranhão
Vice Presidente da CNBB
Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário Geral da CNBB

João Paulo II: o atleta de Deus que também nos ensinou a morrer



Em livro, o doutor Renato Buzzonetti narra as últimas horas de vida do pontífice que faleceu há exatos 9 anos, em 2 de abril de 2005
Por Wlodzimierz Redzioch

ROMA, 02 de Abril de 2014 (Zenit.org) - 
Desde que apareceu na janela da Praça de São Pedro com seu sorridente rosto redondo, cheio de energia, o papa que caminhava com passo dinâmico pelas longas escadarias da praça foi chamado de "atleta de Deus". Parecia que aquele homem poderoso e incansável não iria nunca precisar dos médicos, mas tudo mudou num belo dia de primavera de 1981: as balas disparadas pela mão assassina não o mataram, mas minaram seriamente a sua saúde de ferro. Desde então, João Paulo II se tornou também um homem do sofrimento: a doença e a dor se tornaram parte da sua vida e fizeram da Policlínica Gemelli um lugar muito familiar (o papa, aliás, a chamava de "Vaticano III"). Dessa experiência nasceu a carta apostólica "Salvifici doloris", sobre o sentido cristão do sofrimento, além do desejo de ter na cúria um dicastério voltado aos doentes e aos profissionais da saúde: com o motu proprio "Dolentium hominum", João Paulo II estabeleceu o Conselho da Pastoral dos Agentes de Saúde. E foi ele, ainda, que criou a Jornada Mundial dos Enfermos, no dia 11 de fevereiro, festa de Nossa Senhora de Lourdes.
Pouco a pouco, o Parkinson e os problemas com ossos e articulações o foram imobilizando e aprisionando em seu corpo, mas o papa continuava a sua missão sem esconder as suas dores: não para se exibir, mas para reivindicar o valor e o papel de cada pessoa na sociedade, mesmo se doente ou deficiente. As últimas semanas da vida terrena de João Paulo II foram os seus dias de calvário: o papa que tinha nos ensinado a viver nos ensinava também como enfrentar a morte.
Ao lado de João Paulo II até o instante final esteve sempre o médico pessoal, doutor Renato Buzzonetti. No livro-entrevista “Accanto a Giovanni Paolo II” [Ao lado de João Paulo II, publicado na Itália pela Editora ARES], ele conta os trechos seguintes:
* * *
Foram dias que marcaram profundamente a minha vida, dominados por um gravíssimo compromisso profissional, pela participação dolorosa no drama humano e religioso que estava acontecendo diante dos meus olhos, por uma tensão extrema diante da grande responsabilidade que pesava sobre os meus ombros e, finalmente, por uma oração ininterrupta, em comunhão com o papa que sofria na sua cruz mística.
Na quinta-feira, 31 de março de 2005, por volta das 11 horas da manhã, enquanto celebrava a missa na capela privada, o Santo Padre sentiu um tremor intenso, seguido por uma séria elevação da temperatura e por um gravíssimo choque séptico. Graças à habilidade dos reanimadores, a situação crítica foi controlada e dominada mais uma vez.
Perto das 17 horas, foi rezada a santa missa ao pé da cama do papa, que aos poucos emergia do choque. Quem celebrou foi o cardeal Jaworski, com mons. Stanislaw, mons. Mietek e dom Rylko. O Santo Padre estava com os olhos semiabertos. O cardeal de Lviv lhe deu a unção dos enfermos. Na consagração, o papa levantou fracamente o braço direito, duas vezes, em direção ao pão e ao vinho. Tentou bater no peito com a mão direita no momento do Agnus Dei. Depois da missa, a convite de mons. Stanislaw, os presentes beijaram a mão do Santo Padre. Ele chamou as freiras pelo nome e acrescentou: “Pela última vez”. Seu médico, antes de lhe beijar a mão, disse em voz alta: “Santo Padre, nós o amamos e estamos aqui juntos com todo o coração”. Depois, sendo quinta-feira, o Santo Padre quis comemorar a hora de adoração eucarística: leitura, recitação dos salmos, cantos entoados pela irmã Tobiana.
Na sexta-feira, 1º de abril de 2005, depois da missa concelebrada por ele, o Santo Padre pediu, às 8 horas, para fazer a via-crúcis, fazendo o sinal da cruz em cada uma das 14 estações. Participou da recitação da terceira hora do ofício divino e, às 8h30, pediu para ouvir a leitura de passagens da Sagrada Escritura, lidas pelo padre Tadeusz Styczen. Os cuidados médicos continuaram sem pausas.
No sábado, 2 de abril de 2005, foi celebrada a santa missa ao pé da cama do Santo Padre. Ele participou com atenção. No final, com palavras arrastadas e quase ininteligíveis, João Paulo II pediu a leitura do evangelho de São João, que o pe. Styczen fez devotadamente, lendo nove capítulos. Homem contemplativo, com a ajuda dos presentes, o papa recitou as orações do dia até o ofício das leituras do domingo iminente.
Por volta das 15h30, o Santo Padre sussurrou para a Irmã Tobiana: "Deixem-me ir para o Senhor...", em polonês. Mons. Stanislaw me referiu essas palavras apenas alguns minutos mais tarde.
Aquele era o seu "consummatum est" (Jo 19, 30).
Não era uma rendição passiva à doença, nem uma fuga do sofrimento, mas a mostra da consciência profunda de uma via-crúcis bravamente aceita até a espoliação de toda coisa terrena e da própria vida, e que agora se aproximava do objetivo final: o encontro com o Senhor. Ele não queria atrasar esse encontro, esperado desde os anos da juventude. Foi para isso que ele tinha vivido. Aquelas palavras eram de expectativa e de esperança, de renovada e definitiva entrega nas mãos do Pai.
Naquelas mesmas horas, eu e meus colegas médicos constatamos que a doença se voltava inexoravelmente para o fim do seu curso. A nossa batalha tinha sido travada com paciência, humildade e prudência; e fora extremamente difícil, porque, intimamente, nós sabíamos que ela terminaria em derrota. A racionalidade técnica, a consciência e a sabedoria dos médicos, o carinho iluminado dos familiares foram guiados constantemente pelo respeito misericordioso e total do homem que sofria. Não houve tratamento agressivo.
Depois das 16 horas, o Santo Padre foi adormecendo e perdendo gradualmente a consciência. Por volta das 19 horas, ele entrou em coma profundo e em agonia. O monitor registrava o esgotamento progressivo dos parâmetros vitais.
Às 20 horas, começou a missa celebrada aos pés da cama do pontífice que falecia. Foi celebrada por mons. Dziwisz com o cardeal Jaworski, mons. Mietek e dom Rylko. Cantos poloneses se entrelaçavam com os cantares que subiam da Praça de São Pedro, lotada. Uma pequena vela brilhava sobre o criado-mudo, ao lado da cama.
Às 21h37, o Santo Padre morreu.
Depois de poucos minutos de atônita dor, foi entoado o Te Deum em língua polonesa e, da praça, de repente, viu-se iluminada a janela do quarto do papa.

"No matrimônio o amor é mais forte do que as brigas

Durante a Audiência Geral, o Papa Francisco lembra que a união conjugal é um reflexo da aliança entre Deus e o homem
Por Luca Marcolivio

ROMA, 02 de Abril de 2014 (Zenit.org) - O sacramento do matrimônio está enraizado na criação do mundo e na aliança entre o homem e Deus (cf. Gn 1,27; 2, 24), foi o que disse o Papa Francisco durante a Audiência Geral desta manhã que termina o ciclo de catequeses sobre os sacramentos.
"Fomos criados para amar, como um reflexo de Deus e do seu amor - disse o Papa -. E na união conjugal, o homem e a mulher realizam esta vocação no sinal da reciprocidade e da comunhão de vida plena e definitiva”.
A celebração do matrimônio entre um homem e uma mulher, é algo em que Deus, de alguma forma se “espelha” e imprime nos esposos “os próprios traços e o caráter indelével do seu amor”, explicou o Pontífice.
A imagem de Deus, portanto, não é reflexa no homem e na mulher, cada um diferente do outro, mas na “aliança entre o homem e mulher” que são “criados para amar” e cuja união conjugal realiza tal vocação “no sinal da reciprocidade e da comunhão de vida plena e definitiva”.
Mesmo na Santíssima Trindade, de fato, encontra-se o amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo que "vivem desde sempre em uma unidade perfeita”. Da mesma forma o “mistério do Matrimônio” é Deus que faz dos dois esposos “uma só existência” ou, como diz a Bíblia, “uma só carne”.
Centra-se no "mistério” do matrimônio também São Paulo que nos lembra como a relação estabelecida por Cristo com a Igreja seja “delicadamente nupcial” (cf. Ef 5,21-33). Isso significa que o matrimônio "responde a uma vocação específica e deve ser considerado como uma consagração (cf. Gaudium et spes, 48; Familiaris Consortio , 56)", disse o Papa.
A união entre homem e mulher é uma verdadeira "consagração" em nome do “seu amor” e “por amor”.. “Os esposos, de fato – acrescentou – em virtude do Sacramento, são investidos por uma verdadeira e própria missão, para que possam tornar visíveis, a partir das coisas simples, ordinárias, o amor com o qual Cristo ama a sua Igreja, continuando a doar a vida por ela, na fidelidade e no serviço”.
No matrimônio “o verdadeiro vínculo é sempre com o Senhor” e este vínculo é fortalecido “quando o esposo ora pela esposa e a esposa ora pelo esposo”. Mesmo com todas as dificuldades que a vida matrimonial traz - dificuldades económicas e laborais, nervosismo, brigas - "não devemos ficar tristes com isso", exortou o Papa Francisco.
"A condição humana é assim. Mas o segredo é que o amor é mais forte do que as brigas. E é por isso que eu conselho aos esposos, sempre, que nunca terminem um dia em que tenham brigado sem fazer as pazes. Sempre!”, concluiu o Santo Padre.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Catacumbas: onde os mártires repousam



Fabrizio Bisconti, diretor da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra para as Catacumbas, fala sobre os originais cemitérios cristãos
Por Laura Guadalupe

ROMA, 01 de Abril de 2014 (Zenit.org) - Nas entranhas da Cidade Eterna, protegidos do caos que fere os ouvidos, há lugares em que só o silêncio fala. Ele fala com toda a sua força ensurdecedora, especialmente quando se dirige ao coração e conta histórias de homem e mulheres que deram a vida para defender a própria fé. É o mundo subterrâneo das catacumbas, onde foram sepultados alguns pontífices e os primeiros cristãos.
ZENIT conversou a respeito com Fabrizio Bisconti, diretor da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra para as Catacumbas..
***
Quais são as origens das catacumbas?
Bisconti: As catacumbas, entendidas como cemitérios cristãos, hipogeus, nasceram em Roma entre o fim do século II e o início do III, durante o pontificado de Zeferino (199-217), que encarregou o diácono Calisto, depois eleito papa (217-222), de supervisar o cemitério da Via Ápia. Lá foram sepultados alguns pontífices do século III, entre os quais Sisto II, assassinado durante a perseguição de Valeriano, em 6 de agosto de 258. As catacumbas são o começo de um sistema funerário original: são cemitérios exclusivos, onde eram sepultados os fiéis pertencentes à comunidade cristã, como num abraço fraterno.
Como elas mudaram de função ao longo do tempo?
Bisconti: Como sepultura dos mártires, as catacumbas mantiveram a função funerária, mas assumiram também um papel devocional, porque os peregrinos iam venerar as sepulturas santas no dies natalis (dia da morte) do mártir, para rezar e comer uma refeição simbólica fúnebre (refrigerium). Na Alta Idade Média, as catacumbas perdem a função funerária e mantêm só a de veneração.
Quantos mártires cristãos foram sepultados nelas durante as perseguições?
Bisconti: Os mártires romanos de que temos notícia pelas fontes e testemunhos arqueológicos são cerca de uma centena. Mas muitos deles não foram registrados pelas fontes nem pela memória devocional.
Há muitos mártires dos quais não se sabe nada, mas, de muitos outros, temos informações sobre o nome, a história. São Sebastião e Santa Inês, por exemplo. Na sua opinião, qual é a catacumba mais cheia de fascínio, seja por conter os restos de um santo ilustre, seja pelas inumeráveis relíquias de desconhecidos?
Bisconti: O complexo mais interessante, sem dúvida, é o de São Calixto, que tem mártires ilustres como Sisto II, já mencionado, mas que tem relação também com mártires imersos na fabulação legendária, e mesmo assim muito amados pelos fiéis, como Santa Cecília e São Tarcísio.
Só em Roma há cerca de sessenta catacumbas. Quais são as mais visitadas e as mais antigas? E no resto da Itália?
Bisconti: As catacumbas romanas mais visitadas e abertas ao público são as de São Calixto e São Sebastião, na Via Ápia; de Domitila, na Via Ardeatina; de Santa Inês, na Via Nomentana; de Priscila, na Via Salária. As catacumbas mais antigas são as de Sebastião, Calixto, Domitila, Priscila, Calepódio, Pretextato, Novaciano, dos Santos Pedro e Marcelino e de Santa Inês. Na Itália temos que recordar também as catacumbas de São Genaro, em Nápoles, de São João, em Siracusa, de Santo Antíoco, na Sardenha, de Santa Catarina e São Mustiola em Chiusi, de São Senador, em Albano, e de Santa Cristina, em Bolsena.
Esses cemitérios se caracterizam também pela presença de uma arte pictórica narrativa e simbólica. Por exemplo, nas catacumbas de Priscila, em Roma, é conservada a imagem mais antiga de Maria. De quando é exatamente esse afresco? Quais são as particularidades dele?
Bisconti: A “Madonna” de Priscila é de 230-240. A pintura representa Maria com o Menino (Virgo Lactans), com o profeta Balaão apontando as estrelas, para anunciar a chegada do Messias.
Houve outras descobertas de antiguidade parecida?
Bisconti: Sim. Por exemplo, no cemitério de Pretextato, também na primeira metade do século III, podemos encontrar um afresco que representa a cena mais antiga da coroação de espinhos.

Viva como se fosse morrer mártir hoje



Palavras escritas com o sangue dos mártires do século XX e XXI
Por Robert Cheaib

ROMA, 01 de Abril de 2014 (Zenit.org) - 
As palavras do título são da luminosa figura do século XX, o irmão universal, Charles de Foucauld, que foi morto pelos muçulmanos aos quais se dedicou com heroica  generosidade de presença. Isso mostra que o seu martírio, provavelmente um erro humano, não o pegou desprevenido! Ele escreveu: " “Que nosso único tesouro seja Deus, que nosso coração pertença completamente a Deus, tudo em Deus, tudo por Deus! Somente Ele! Sejamos vazios de tudo, tudo quanto foi criado, desapegados mesmo dos bens espirituais, mesmo das graças de Deus, vazios de tudo para poder sermos inteiramente repletos de Deus”. As palavras do Irmão Charles nos mostra o verdadeiro significado do martírio, não como um momento trágico, mas como existência ‘Teodramática’ , como único verdadeiro caso real e sério.
Pensamento semelhante é o de Abraham Joshua Heschel: "Há apenas um problema real e sério, o do martírio. Trata-se da questão: existe algo tão valioso pelo qual vale a pena viver, algo grande o suficiente pelo qual  vale a pena morrer? Podemos viver a verdade apenas se tivermos a força para morrer por ela".  Estas palavras não nascem em um momento de retórica inflamada, que o pregador sente nas veias de vez em quando. Surgem a partir da experiência de um grande homem, um rabino que foi deportado para um campo de concentração dentro de um vagão de gado.
Vale a pena viver por algo que vale a pena morrer. Palavras fortes, exigentes, que talvez tenha o direito de dizer apenas aqueles que se encontram realmente diante de uma única opção e a escolhe com coragem. E quantos cristãos, de todas as denominações, viveram a verdade dessa afirmação no século XX (século em que morreram mais cristãos do que nos 19 precedentes)? O sangue dos mártires é a semente de cristãos. O Papa João Paulo II nos faz recordar  que as chamadas “concessões" do Imperador Constantino garantiram o desenvolvimento da Igreja, mas foram as “sementes plantadas pelos mártires e o patrimônio de santidade" que marcaram as primeiras gerações de cristãos” .
E mesmo assim, sobre o martírio sempre ocorre alguns “clichês”, fomentados pela última onda de Kamikaze do islamismo fundamentalista. O martírio cristão é outra coisa. Não é uma escolha de morte, mas uma escolha de vida, da Vida. Não é uma escolha contra, mas uma escolha por algo. Nos recorda o biblista Bruno Maggioni: "o mártir não escolhe a morte, mas um modo de viver, o de Jesus".
Na mesma linha, o gênio literário de T.S. Eliot fala do conceito cristão do martírio de Dom Thomas Becket, em sua última homilia antes de seu martírio: "Um mártir, um santo, é constituído por um desenho de Deus, de seu amor pelos homens, para alertá-los e guia-los, para reconduzi-los para o seu caminho. O martírio nunca é o desenho de um homem; porque o verdadeiro mártir é aquele que se tornou um instrumento de Deus, que perdeu a sua vontade na vontade de Deus: não perdida, mas encontrada, pois encontrou a liberdade na submissão a Deus. O mártir já não deseja nada para si, nem mesmo a glória do martírio".
O martírio é o caso que nos lembra  que não existe  fé "low cost" (Papa Francisco), exprime uma conformação a Cristo na vida e na morte. Nem sempre a morte é a morte do corpo. Às vezes, é o martírio das circunstâncias, o martírio de uma doença, da solidão vivida com e por amor. O mártir de hoje também pode ser, como bem explica Timothy Radcliffe,"um professor que fica acordado até tarde para preparar a aula do dia seguinte, ou apenas alguém que se preocupa em sorrir para quem está cansado, exausto. Pode ser  dizer com sinceridade o que pensa, mesmo que isso possa arruinar sua carreira ou fazer perder o trabalho".
O livro de Gerolamo Fazzini, em italiano,  Scritte com il Sangue. Vita e parole di testimoni dela fede del XX e XXI secolo, reúne testemunhos, em primeira pessoa, de mais de 100 testemunhas,  a maioria católicos, mas não apenas, porque o martírio é uma das dimensões do ecumenismo espiritual doada pelo Espírito a todos os cristãos. Não faltam exemplos de figuras não-cristãs, como a do hindu Gandhi, a judia Etty Hillesum e o muçulmano argelino Said Mekbel .

terça-feira, 1 de abril de 2014

Papa Francisco alerta sobre os cristãos errantes



O Santo Padre nos pede confiar nas promessas de Deus

CIDADE DO VATICANO, 31 de Março de 2014 (Zenit.org) - Não vagar sem rumo pela vida, nem sequer pela vida do espírito: caminhar rumo à meta de um cristão significa seguir as promessas de Deus, que nunca nos decepcionam. Este foi o ensinamento que o papa Francisco extraiu das leituras da missa de hoje e apresentou em sua homilia na capela da Casa Santa Marta.
Há cristãos que confiam nas promessas de Deus e as seguem ao longo da vida. Há outros cuja vida de fé fica estancada. Outros ainda têm a certeza de estar progredindo, mas, na verdade, só fazem “turismo existencial”. O papa distinguiu três tipos de crentes, que têm como comum denominador o fato de saberem que a vida cristã é um percurso, mas que divergem no modo de segui-lo ou que não o seguem de forma nenhuma.
Inspirando-se na passagem de Isaías, da primeira leitura, Francisco explicou que Deus sempre “promete antes de pedir”. E acrescentou que a promessa de Deus é a de uma vida nova, de uma vida de alegria. Este é “o fundamento principal da virtude da esperança: confiar nas promessas de Deus”, sabendo que Ele jamais “decepciona”, já que a essência da vida cristã é “caminhar rumo às promessas”.
Há também os cristãos que sofrem “a tentação de parar”: “Há tantos cristãos parados! Tantos que têm uma esperança frágil! Eles acreditam, sim, que existe o céu e que tudo vai dar certo. É bom que eles acreditem, mas eles não vão atrás! Cumprem os mandamentos, os preceitos: tudo, tudo… Mas ficam parados. Nosso Senhor não pode transformá-los em fermento no povo, porque eles não caminham. E isto é um problema: os cristãos parados. Depois, há outros que erram de caminho: todos nós, de vez em quanto, erramos de caminho, já sabemos disso. O problema não é errar de caminho; o problema é não voltar atrás quando nos damos conta”.
O modelo de quem crê e segue o que a fé indica é o funcionário do rei descrito no Evangelho, que pede a Jesus a cura de um filho doente e não duvida nem mesmo por um instante em ir para casa quando o Mestre lhe assegura que o pedido já está atendido. Oposto a esse homem, afirmou o Santo Padre, temos o grupo “talvez mais perigoso”, o daqueles que “enganam a si mesmos: os que caminham, mas não seguem o caminho”.
“São os cristãos errantes: eles dão voltas e mais voltas, como se a vida fosse um turismo existencial, sem meta, sem levar as promessas a sério. Aqueles que dão voltas e se enganam, porque dizem: ‘Eu estou caminhando!’. Não, você não está caminhando: você está só dando voltas. Os errantes… Nosso Senhor nos pede para não parar, para não errar de caminho e não ficar dando voltas pela vida. Dar voltas pela vida... Ele nos pede para olhar para as promessas, para irmos em frente como aquele homem: aquele homem acreditou na palavra de Jesus! A fé nos coloca no caminho das promessas. A fé nas promessas de Deus”.
“Nossa condição de pecadores nos faz errar de caminho”, reconheceu o pontífice, que, porém, assegurou que “nosso Senhor sempre nos dá a graça de voltar”.
“A quaresma é um tempo bonito para pensar se eu estou no caminho ou se eu estou quieto demais. Converta-se! Ou se errei de caminho.. Mas vá se confessar e retome o caminho. Ou se eu sou um turista teologal, que passeia pela vida, mas nunca dá um passo para frente. E peço ao Senhor a graça de retomar o caminho, de me colocar a caminho, rumo às promessas”.

segunda-feira, 31 de março de 2014

QUARESMA E CONFISSÃO




Cardeal Orani João Tempesta

O sacramento da Penitência ou Confissão é sinal da graça divina para a restituição do pecador na comunhão da Igreja. O objetivo deste sacramento é a reconciliação: reconciliação com Deus, reconciliação com os semelhantes e reconciliação consigo mesmo. O sacramento da penitência é, em primeiro lugar, um anúncio e uma atuação da misericórdia de Deus.
 Jesus deu a toda a Igreja o poder de perdoar os pecados. É ela que é ministra da reconciliação. Mas é o Bispo, como sucessor dos Apóstolos e Pastor da Igreja, quem tem primariamente o poder e a autoridade de perdoar os pecados em nome de Cristo e da Igreja. Pelo sacramento da Ordem, ele recebeu este poder em nome da Igreja toda (Jo 21,22). Este poder – que é um serviço ao desígnio do Pai de reconciliar a humanidade com Ele pelo Filho no Espírito – o Bispo compartilha com os presbíteros (= padres), que receberam também o sacramento da Ordem no grau de sacerdotes.
É importante compreender que o padre não é dono do sacramento da Penitência; é ministro (= servidor): ele somente pode perdoar em nome de Cristo e da Igreja. Então, não pode extrapolar o poder a autoridade que a Igreja lhe concedeu. Em relação aos ministros: eles estão sujeitos à lei do sigilo sacramental. Jamais, direta ou indiretamente, o confessor pode revelar algo que ouviu em confissão. Mesmo que não seja pecado, se a informação foi obtida no sacramento, não pode ser utilizada. Um confessor que viole este sigilo está sujeito a severas penas.
Quanto aos efeitos do Sacramento da Penitência, recordemo-nos que o pecado é uma ruptura da comunhão com Deus que nos desarruma interiormente e nos faz romper com os irmãos na fé. O pecado provoca sempre uma ferida não só em nós mesmos, mas também em todo o Corpo de Cristo, que é a Igreja: eu me torno um membro ferido do Corpo de Cristo, prejudicando todo o Corpo do Senhor.
O perdão nos restitui a amizade de Deus, a sua graça em nós, dando-nos a verdadeira paz interior, sendo uma verdadeira ressurreição espiritual. É um renovar a veste branca batismal. É importante notar que essa paz é dada mesmo quando eu não a sinto de modo sensível. Não se trata de sentimentos, mas da realidade do Sacramento, que é ação de Cristo e da Igreja.
O Sacramento também nos reconcilia com a Igreja, comunhão dos irmãos em Cristo, de quem o pecado nos separa. Assim, eu me torno mais forte, pois novamente estou em comunhão com meus irmãos e com a vida da Igreja, que é dada na Palavra do Senhor e nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia. É importante notar ainda que a Reconciliação fortalece também a Igreja, pois cada membro seu que é curado de seu pecado fortalece todo o Corpo de Cristo. Todos os pecados têm repercussão na Igreja toda!
A Igreja pede que pelo menos uma vez ao ano, na Páscoa do Senhor, nos confessemos e comunguemos. Aqui, é necessário deixar claro que a Igreja nos pede que “façamos Páscoa” e que essa norma não é quantitativa, mas sim a experiência pascal. Não é uma questão de mínimo! Quem ama não dá o mínimo; procura dar o máximo. Assim, para um cristão consciente e que deseja ter uma vida cristã séria, a celebração da misericórdia deve ser constante e muito mais ainda a participação na Eucaristia, que deveria ser ao menos semanal, pelo domingo, dia do Senhor.
Faço um apelo veemente aos caríssimos sacerdotes, párocos, administradores paroquiais e vigários paroquiais para que intensifiquem a oferta de tempo necessário para o atendimento das confissões auriculares em todo o tempo quaresmal. É função primordial do sacerdote atender as confissões para que os fiéis reencontrem a graça santificante. Isso, além dos “mutirões de confissões” que existem por toda a Arquidiocese, quando os padres vizinhos se ajudam mutuamente nessa ocasião.
Portanto, neste tempo Quaresmal somos chamados à conversão e a anunciar a reconciliação, pois esta deve ser acolhida no coração humano para que possa dar frutos. A resposta do homem é chamada comumente de conversão, ou seja, de volta. Não há reconciliação sem a iniciativa de Deus, mas também não há sem a resposta do homem. O sacramento da Penitência supõe essencialmente um diálogo. Por isso, eis que convido você a renovar sua vida cristã e, neste tempo de conversão, a manifestar o acolhimento da misericórdia ao se aproximar deste belo Sacramento da Penitência.

Catequese para Adultos no contexto adulto



A catequese adulta é um encontro que provoca mudança de vida: hoje a salvação entrou nesta casa (Lc 19,9).

Brasília,  (Zenit.org)

 José Barbosa de Miranda 

A catequese adulta é um encontro que provoca mudança de vida: “hoje a salvação entrou nesta casa” (Lc 19,9).
Esta catequese tem sua pedagogia própria, seu conteúdo específico voltado para indivíduos adultos em seu contexto. É a comunicação do amor de Deus a quem pode decidir sobre sua vida e mudar seu ambiente. Esta catequese visa um reencontro com o Deus de Jesus Cristo. Não se prioriza a iniciação cristã de forma orgânica, como na preparação para os primeiros sacramentos, mas conduz para a intimidade adulta com Cristo, em sua Palavra e Sacramentos, estimulando adesão de todo o ser.
COM O MAGISTÉRIO DA IGREJA
A exortação apostólica Catechesi Tradendae, de João Paulo II, nos ajuda a encaminhar esse processo de amadurecimento na fé e no amor para viver a esperança. Na catequese com adultos, os encontros devem motivar o homem na transformação do seu meio de forma responsável: “Esta é a principal forma de catequese, porque se dirige a pessoas que têm as maiores responsabilidades e a capacidade para viverem a mensagem cristã na sua forma plenamente desenvolvida. A comunidade cristã, efetivamente, não poderia por em prática uma catequese permanente sem a participação direta e experimentada dos adultos, quer eles sejam destinatários quer sejam promotores da atividade catequética” (CT n. 43). E a exortação apostólica continua lembrando que são os adultos que governam o mundo, gerenciam os negócios, vivem a realidade temporal, por isso a catequese deve ser permanente, acompanhando-os na lapidação de sua maturidade. Chega a afirmar que a catequese seria ineficaz se parasse no começo da maturidade.
O conteúdo dessa catequese deve ser extraído da realidade dos adultos. Do mundo que os cerca, das suas angústias, dos confrontos com a fé.  É a catequese de pé no chão. A partir da realidade temporal, procurar confrontá-la com a Revelação que Deus faz de si mesmo, na Sagrada Escritura, que é a história de Deus entre os homens. Essa catequese proporciona a perspectiva para uma sociedade mais justa e fraterna, criando elementos de discernimento para uma consciência sazonada na verdade de Cristo.
CRISTO COMO MODELO
São Lucas nos descreve o encontro de Zaqueu com Jesus (cf.Lc 19,1-9). Nele encontramos um dos exemplos de catequese adulta com adultos. A iniciativa é de Zaqueu, homem pequeno na fé, mas cheio de curiosidade sobre Jesus. Procura um lugar alto, uma árvore, para ver o Mestre que empolga multidões. Ele é rico, chefe dos cobradores de impostos, posto importante no império romano, mas sua conduta moral é odiada pelos compatriotas judeus. É um pecador público que explora todos, inclusive os pobres que perderam suas terras pelo endividamento tributário. E hoje o meio empresarial e governamental, em alguns casos, também fazem coisas semelhantes, explorando o pobre com salários injustos ou crimes de peculato pela corrupção institucionalizada.  Enriquecem-se com a pobreza de muitos. Jesus percebe o curioso pecador público e se convida para um encontro íntimo e familiar. Ele quer conversar a sós com o pecador, em sua casa. O evangelho não entra no conteúdo da conversa, mas é fácil deduzir que Jesus discorrera sobre a Lei, lembrando a fidelidade que trás bênção e vida, e infidelidade que acarreta maldição e morte (cf. Dt 28, 1-46). Deve ter comentado com ele sobre o ano sabático (cf. Dt 15,1-18) que manda perdoar a todos os devedores que não podem pagar suas dívidas, “não explorando seu próximo, nem seu irmão”. Certamente dialogaram sobre a traça que corrompe e destrói tudo (cf. Is 50,9; 51,8; Jó 4,19; 13,28; Mt 6,19-20). Falaram sobre a riqueza que não compra a vida eterna (cf.Lc 16,19ss). Jesus fez uma verdadeira catequese bíblica que levou Zaqueu rever sua vida.
CONSEQUÊNCIAS DA CATEQUESE
Com essa catequese é possível perceber as suas consequências: Zaqueu fez justiça a quem injustiçara, humanizou os seus negócios (sua empresa), reconciliou-se com sua consciência e com Deus.
A catequese adulta com adultos é para penetrar na realidade dos adultos como um todo. Ela não é uma mera transmissora de doutrina, mas deve levar as pessoas a fazerem uma opção responsável pelo Reino de Deus. Podemos dizer que a catequese com adultos deve provocar uma reviravolta no mundo dos adultos. Não se trata de catequese moralista, mas de uma viagem no interior do homem e da mulher, na sua realidade, no seu mundo, conduzindo-os à redescoberta de pessoas criadas com a imagem e semelhança de Deus.
ACOLHER PARA O ENCONTRO
Um fato que nos chama a atenção é que Jesus, nesse episódio, foi à casa de Zaqueu. Quis que sua família participasse da catequese. Foi uma conversão em família. É verdade que o evangelista não faz referência aos familiares, como era costume na época. O pai de família era o responsável pelo clã. Suas decisões eram aceitas por todos os familiares. E Jesus disse explicitamente: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão” (19,9). Os descendentes da promessa são, também, descentes das bênçãos.
A catequese não faz acepção de pessoas. Ela deve atingir a todos. É uma catequese que vai ao encontro e provoca a conversão: “hoje devo ficar em tua casa”.

domingo, 30 de março de 2014

Oração: elevação da alma a Deus



Tripé da Quaresma: ascese, amor cristão e a oração - Parte III
Por Vanderlei de Lima
AMPARO, 28 de Março de 2014 (Zenit.org) -
Dentre as diversas definições de oração, uma muito precisa é a de São João Damasceno (†749), Padre da Igreja grega, citada no Catecismo da Igreja Católica n.. 2259, que diz: “A oração é a elevação da alma a Deus ou o pedido a Deus dos bens convenientes”.
Todos os seres criados, cada um a seu modo, louvam a Deus ou Lhe dão glória. Os minerais, os vegetais e os animais irracionais pelo fato de serem frutos da sabedoria divina proclamam a grandeza do Criador pela simples razão de existirem. Já os seres humanos espelham a grandeza de Deus de maneira consciente e explícita (ajoelham-se, falam, cantam etc.).
Essas razões de louvores presentes, naturalmente, nos homens e mulheres em geral devem estar muito mais impregnadas nos cristãos, pois pelo Batismo nos tornamos filhos de Deus por Jesus Cristo, na Igreja, e por isso nos dirigimos, filialmente, ao Senhor como a um pai amoroso (cf.. Gl 4,4-6; Rm 8,15).
Dirigimo-nos para pedir a Deus a força, que só a oração pode dar, de sermos bons cristãos. Afinal, sem Deus nada podemos fazer (cf. Jo 15,5), pois nossa força vem d’Ele (cf. 2Cor 3,5) e é n’Ele que está o nosso querer e agir,ou seja, a nossa vida (cf. Fl 2,13), uma vez que com Ele tudo podemos (cf. Fl 4,14).
Os santos, sem exceção, seguiram esses ensinamentos a respeito do sublime valor da oração. Santo Afonso Maria de Ligório (†1787), fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentoristas, por exemplo, ensina: “Todos os santos se santificaram por meio da oração; todos os condenados se perderam por não terem rezado; se o tivessem feito, com persistência, ter-se-iam salvado”.
Toda oração deve ser feita em Cristo que vive em nós (cf. Gl 2,20) e na Igreja, Corpo Místico do mesmo Cristo prolongado na história (cf. Cl 1,24; 1Cor 12,12-21), a quem o cristão deve estar unido. Aquele que não pensa e não sente com a Mãe Igreja vai aos poucos se afastando de Deus para buscar sua salvação em cisternas furadas que não podem conter água (cf. Jr 2,13). Aqui importa notar que o fiel que se põe a rezar deve ter por meta as quatro atitudes abaixo elencadas.
1) Adoração que é o reconhecimento da absoluta soberania de Deus. Rezamos e adoramos porque Deus é Deus e merece o nosso reconhecimento, independentemente de tudo o mais. Essa adoração pode se dar por palavras, gestos (ajoelhar-se, prostrar-se por terra, erguer as mãos etc.) ou simplesmente no profundo silêncio interior.
2) Ação de graças é o agradecimento da criatura ao Criador pelos benefícios recebidos. É importante notar que não devemos agradecer somente as coisas que julgamos boas, mas, ao contrário, precisamos aprender a dar graças também pelas cruzes que nos vêm. Na vida, tudo concorre para o bem dos que amam o Senhor (cf. Rm 8,28).
3) Expiação é o pedido de perdão pelos nossos pecados e a reparação pelos pecados do mundo. Todos somos pecadores e precisamos da misericórdia do Pai. Aqui entra uma constatação importante: um(a) santo(a) não é alguém sem pecados, mas, sim, aquele(a) que se reconhece pecador(a) e sinceramente se arrepende.
4) Súplica é a apresentação das nossas necessidades espirituais e materiais ao Senhor enquanto somos peregrinos nesta terra.. É lícito pedir coisas legítimas ao Senhor sempre sob a indiscutível condição de que seja feita a vontade d’Ele e não a nossa (cf. Mt 26,39), pois Deus nem sempre dá o que pedimos, mas, sim, o que nós mais precisamos naquele momento.
Como se vê as quatro formas de rezar se resumem a duas como no Pai-Nosso: primeiro, olhar para o Pai com gratidão e, segundo, voltar-se para as nossas misérias suplicando Sua poderosa ajuda.
Eis um importante meio para se santificar: a oração diária e constante.
Para aprofundamento: Catecismo da Igreja Católica n. 2558-2865.

Não é possível manter conceitos como "não praticante"



Reflexões de Dom Alberto Taveira, Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará.
Por Dom Alberto Taveira Corrêa

BELéM DO PARá, 28 de Março de 2014 (Zenit.org) -

 "Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá" (Ef 5, 14). A luz e o dia que vencem a escuridão são imagens que perpassam as culturas e as épocas, presentes também em várias concepções da vida humana em diversas religiões. Também a Sagrada Escritura recorre com frequência a esta polarização entre a luz e as trevas, como apresenta a Igreja durante estes dias de Quaresma.
A Igreja vive uma estação claramente catecumenal, proporcionando aos que já são batizados acompanharem os irmãos e irmãs que serão batizados na Vigília Pascal e renovarem seus compromissos. Neste percurso formativo, todos os cristãos são convidados a se confrontarem com Cristo, Água viva que sacia a humanidade, Luz do Mundo, vencedor das trevas do pecado, Cristo, Ressurreição e vida. Na presente etapa, o convite é dirigido a todas as pessoas que querem deixar-se tocar por Jesus, acompanhados por um certo cego de nascença, na narrativa esplendorosa do Evangelho de São João (Jo 9, 1-38). Jesus realiza uma obra nova, recria o cego, que alcança o ponto mais alto de sua existência: "Quando Jesus o encontrou, perguntou-lhe: 'Tu crês no Filho do Homem?' Ele respondeu: 'Quem é, Senhor, para que eu creia nele?' Jesus disse: 'Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo. Ele exclamou: 'Eu creio, Senhor!' E ajoelhou-se diante de Jesus" (Jo 9,35-38).
Ouvi de uma mulher, cega de nascença, na autoridade de seus mais de oitenta anos, uma afirmação desconcertante: "Agradeço a Deus por ser cega, pois a maior parte dos pecados começa com a vista! Não enxergando, posso pecar menos, dizia magistralmente esta senhora que nunca leu uma letra, diante de alguém que se tinha debruçado várias vezes diante da palavra do Evangelho: "Se teu olho direito te leva à queda, arranca-o e joga para longe de ti! De fato, é melhor perderes um de teus membros do que todo o corpo ser lançado ao inferno" (Mt 5,29). Trata-se uma revolução na escala de valores que pode orientar a vida, na qual importa efetivamente uma vida distante do pecado! É que Deus não nos fez para o egoísmo e a maldade, mas para a virtude e para o bem!
O presente de Deus que nos foi confiado no Batismo, a iluminação da fé, abre horizontes diferentes para a vida inteira. O próprio Batismo já foi chamado "iluminação". Os cristãos hão de aproveitar a graça da purificação quaresmal, lavar seus olhos, ou quem sabe passar um bom colírio (Cf. Ap 3,18), para enxergar de novo e de forma renovada a vida e os acontecimentos. Cabe-lhes mudar o rumo da vida e contribuir para que o mundo se conforme aos valores do Reino de Deus. Ora, trata-se de fazer opções diferentes, afastando-se da escuridão do pecado, buscando lá dentro, no Batismo recebido, as forças para lutar contra a correnteza.
A Igreja nos oferece, através das leituras da Escritura escolhidas para o Tempo Quaresmal, indicações precisas, para que a luz de Deus, que um dia brilhou em nós pelo Batismo, jamais se esconda e não se apague em nós o seu fulgor, como muitas vezes cantamos num hino de renovação do Sacramento da iluminação! Sim, queremos que o amor plantado em nossos corações ajude os irmãos a caminharem, guiados pelas mãos de Deus, na nova Lei do Evangelho. É na escola de São Paulo (Ef 5, 8-14) que encontramos os frutos da luz!
A luz de Deus resplandece na bondade com que os cristãos são chamados a agir. Pequenos gestos de atenção, olhares feitos de simplicidade, iniciativas comunitárias, compromisso com o bem. Mesmo quando nos sentimos limitados, ou quando efetivamente pecamos pela fraqueza que nos acompanha, ser filhos da luz significa não compactuar com as más intenções, mas purificar-nos decididamente, comprometendo-nos com o bem.
Os homens e as mulheres marcados pela graça batismal se comprometem com a justiça e não aceitam qualquer vínculo com meios ilícitos em vista de objetivos como o lucro, a projeção social ou qualquer outro proveito a ser alcançado indignamente. Consequências? Palavra dada, lisura nos negócios, retidão na administração dos bens, irrepreensibilidade no comportamento social.
Mais ainda, no programa de vida decorrente do Batismo: a opção pela verdade. A história da Igreja e da humanidade está repleta de exemplos de homens e mulheres retilíneos em seu comportamento, capazes de suscitar santa inveja em gerações que os sucedem. É claro que tal escolha tem consequências, inclusive sofrimento ou derramamento do próprio sangue para serem coerentes com a verdade. São pessoas das quais "o mundo não era digno"(Hb 11,38), que enfrentaram todos os desafios, sem jamais ceder no compromisso assumido. E escolheram a Verdade que é Jesus Cristo, sem inventar suas próprias verdades ou meias-verdades.
Para alcançar tais alturas, as quais todos somos destinados, quem se descobre filho da luz, no sentido que São Paulo, na Carta aos Efésios (5, 8-14) e a Igreja entendem, busca o discernimento do que agrada ao Senhor. Um dos pontos de referência se encontra nos mandamentos, resumidos no amor a Deus e ao próximo. Outra ajuda preciosa no discernimento é a chamada "regra de ouro" (Cf. Mt 7,12), que propõe fazer aos outros aquilo que desejamos que seja feito a nós mesmos. Vale também escutar as outras pessoas, conselheiros e conselheiras que nos ajudam a ver ângulos diferentes quando se trata de tomar decisões. Mais ainda, é na escuta da Palavra de Deus e na oração que se identifica cada passo a ser dado na vida.
A seriedade com que o cristão assume sua vida exige ainda que ele não se associe com as obras das trevas. De fato, tudo o que precisa ficar escondido, resistindo à luz da verdade, traz consigo suspeita e desconfiança, pelo que a prática das virtudes evangélicas acrescenta ainda a exigência de radicalidade. Não dá para ser meio cristão e meio pagão. Se quisermos ser honestos com a própria consciência e com a verdade, não será possível manter conceitos como "não praticante", referindo-se a cristãos que entenderam a beleza da graça recebida no Batismo.
O apelo feito pela Igreja é, sim, pela seriedade na vivência cristã. E este é o tempo oportuno, a hora da graça e da salvação. Cresça em número e qualidade o povo amado por Deus. E como, graças a Deus, a maioria das pessoas que se envolvem conosco recebeu o Batismo, é hora de dizer: ninguém fique de fora!