sábado, 13 de setembro de 2014

O essencial do Evangelho é a misericórdia


CIDADE DO VATICANO, 10 de Setembro de 2014 (Zenit.org
Na Audiência Geral desta quarta-feira (10), o Papa Francisco continuou o ciclo de catequeses sobre a Igreja. Apresentamos o texto na íntegra:
Queridos irmãos e irmãs, bom dia
No nosso itinerário de catequeses sobre a Igreja, estamos nos concentrando em considerar que a Igreja é mãe. Na última vez, destacamos como a Igreja nos faz crescer e, com a luz e a força da Palavra de Deus, nos indica o caminho da salvação e nos defende do mal. Hoje gostaria de destacar um aspecto particular desta ação educativa da nossa mãe Igreja, isso é, como ela nos ensina as obras de misericórdia.
Um bom educador aponta para o essencial. Não se perde nos detalhes, mas quer transmitir aquilo que realmente conta para que o filho ou aluno encontre o sentido e a alegria de viver. É a verdade. E o essencial, segundo o Evangelho, é a misericórdia. O essencial do Evangelho é a misericórdia. Deus enviou o seu Filho, Deus se fez homem para nos salvar, isso é, para nos dar a sua misericórdia. Jesus diz isso claramente, resumindo o seu ensinamento para os discípulos: ?Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso? (Lc 6, 36). Pode existir um cristão que não seja misericordioso? Não. O cristão necessariamente deve ser misericordioso, porque isto é o centro do Evangelho. E fiel a este ensinamento, a Igreja só pode repetir a mesma coisa aos seus filhos: ?Sede misericordiosos?, como o é o Pai, e como o foi Jesus. Misericórdia.
E então a Igreja se comporta como Jesus. Não faz lições teóricas sobre amor, sobre misericórdia. Não difunde no mundo uma filosofia, uma via de sabedoria? Certo, o Cristianismo é também tudo isso, mas por consequência, reflexo. A mãe Igreja, como Jesus, ensina com o exemplo, e as palavras servem para iluminar o significado dos seus gestos.
A mãe Igreja nos ensina a dar de comer e de beber a quem tem fome e sede, a vestir quem está nu. E como faz isso? Com o exemplo de tantos santos e santas que fizeram isto de modo exemplar; mas o faz também com o exemplo de tantos pais e mães, que ensinam aos seus filhos que aquilo que sobra para nós é para aqueles a quem falta o necessário. É importante saber isso. Nas famílias cristãs mais simples, sempre foi sagrada a regra da hospitalidade: não falta nunca um prato e uma cama para quem tem necessidade. Uma vez uma mãe me contava ? na outra diocese ? que queria ensinar isto aos seus filhos e dizia a eles para ajudar e dar de comer a quem tem fome; ela tinha três filhos. E um dia, no almoço ? o pai estava fora a trabalho, estava ela com os três filhos, pequenos, 7, 5 e 4 anos, mais ou menos ? e bateram à porta: era um senhor que pedia o que comer. E a mãe lhe disse: ?Espere um minuto?. Entrou e disse aos filhos: ?Há um senhor ali que pede o que comer, o que fazemos??. ?Demos a ele o que comer, mãe, demos a ele!?. Cada um tinha no prato um bife com batatas fritas. ?Muito bem ? disse a mãe ? peguemos a metade de cada um de vocês e demos a ele a metade do bife de cada um?. ?Ah não, mãe, assim não é bom!?. ?É assim, você deve dar do seu?. E assim esta mãe ensinou aos filhos a dar de comer da própria comida. Este é um belo exemplo que me ajudou muito. ?Mas não me sobra nada??. ?Dai do teu!?. Assim nos ensina a mãe Igreja. E vocês, tantas mães que estão aqui, sabem o que devem fazer para ensinar aos seus filhos para que partilhem as suas coisas com quem tem necessidade.
A mãe Igreja ensina a estar próximo de quem está doente.. Quantos santos e santas serviram Jesus deste modo! E quantos simples homens e mulheres, a cada dia, colocam em prática esta obra de misericórdia em um quarto de hospital, ou de uma casa de repouso, ou na própria casa, ajudando uma pessoa doente.
A mãe Igreja ensina a estar próximo a quem está preso. ?Mas, padre, não, isto é perigoso, é gente má?. Mas cada um de nós é capaz? Ouçam bem isto: cada um de nós é capaz de fazer a mesma coisa que aquele homem ou aquela mulher que está na prisão fez. Todos temos a capacidade de pecar e de fazer o mesmo, de errar na vida. Não é pior que eu ou você! A misericórdia supera todo muro, toda barreira e te leva a procurar sempre a face do homem, da pessoa. E é a misericórdia que muda o coração e a vida, que pode regenerar uma pessoa e permitir a ela inserir-se de modo novo na sociedade.
A mãe Igreja ensina a estar próximo de quem está abandonado e morre sozinho. É aquilo que fez a beata Teresa pelos caminhos de Calcutá; e aquilo que fizeram e fazem tantos cristãos que não têm medo de estender a mão para quem está prestes a deixar este mundo. E também aqui a misericórdia dá paz a quem parte e a quem fica, fazendo-nos sentir que Deus é maior que a morte e que permanecendo Nele mesmo a última separação é um ?até logo?? Beata Teresa havia entendido bem isto! Diziam a ela: ?Madre, isto é perder tempo!?. Encontrava gente morrendo pelo caminho, gente que começava a ter o corpo comido por ratos das ruas, e ela os levava para casa para que morressem limpos, tranquilos, acariciados, em paz. Ela dava a eles o ?até logo?, a todos estes? E tantos homens e mulheres como ela fizeram isto. E eles os esperam, ali [aponta para o céu], na porta, para abrir a porta do Céu. Ajudar as pessoas a morrer bem, em paz.
Queridos irmãos e irmãs, assim a Igreja é mãe, ensinando aos seus filhos as obras de misericórdia. Ela aprendeu este caminho com Jesus, aprendeu que isto é o essencial para a salvação. Não basta amar quem nos ama. Jesus diz que isso o fazem os pagãos. Não basta fazer o bem a quem nos faz o bem. Para mudar o mundo para melhor é necessário fazer o bem a quem não é capaz de nos retribuir, como o Pai fez conosco, doando-nos Jesus. Quanto pagamos pela nossa redenção? Nada, tudo de graça! Fazer o bem sem esperar nada em troca. Assim fez o Pai conosco e nós devemos fazer o mesmo. Faça o bem e siga adiante!
Que belo é viver na Igreja, na nossa mãe Igreja que nos ensina estas coisas que Jesus nos ensinou. Agradeçamos ao Senhor, que nos dá a graça de ter como mãe a Igreja, ela que nos ensina o caminho da misericórdia, que é o caminho da vida. Agradeçamos ao Senhor.

Jesus não é um professor. É alguém que não tem vergonha de estar próximo do povo

Em Santa Marta, o Papa indica três momentos da vida de Cristo que mostram a sua proximidade e recorda que Jesus escolheu todos
Por Salvatore Cernuzio

ROMA, Setembro de 2014 (Zenit.org) -
 Não existe um "professor Jesus": o Filho de Deus não é um professor, um místico, um intelectual que fala da cátedra. Jesus é um homem que está no meio das pessoas e deixa-se tocar, que quer curar e que, neste momento, está perante o Pai e rezar por mim e por você.
Quantos exemplos o Papa Francisco precisa dar para fazer entender que o Senhor está próximo a nós? Toda a homilia na missa desta manhã de terça-feira, em Santa Marta, foi sobre esta mensagem. O Santo Padre partiu do comentário sobre o Evangelho do dia para refletir sobre três aspectos da vida de Cristo que mostram sua proximidade a nós.
O primeiro é a oração. Jesus "é o grande intercessor", diz o Papa. Ele passa a "noite toda em oração a Deus", "reza por nós". E "parece um pouco 'estranho? que, Ele que veio para nos dar a salvação, que tem o poder, reza ao Pai".
Ainda assim, observa o Papa, é "a sua missão hoje", ?Ele está diante do Pai neste momento, rezando por nós, rezando pela Igreja". Desde o primeiro momento, Jesus reza: ?rezou quando estava na terra e continua a rezar agora por cada um de nós, por toda a Igreja?.
É algo que deve nos dar coragem: ?isto deve nos encorajar! Porque nos momentos difíceis, de necessidade e de tantas coisas, devemos pensar: ?Mas Tu estás rezando por mim. Reza por mim junto ao Pai!?. É extremamente reconfortante, destaca o Santo Padre. Mesmo assim, muitas vezes, esquecemos que esta é "a nossa força". Dizer ao Pai: "Mas se Tu, Pai, não nos olha, olha teu Filho que reza por nós?.
Além da oração, Jesus escolhe. Ele escolheu os 12 apóstolos, recorda o Papa, ele escolhe seus seguidores e diz claramente: "Não foram vocês que me escolheram. Fui eu que escolhi vocês". Isso também deve nos encorajar, diz Bergoglio: ter consciência, ou seja, ?eu fui escolhido, fui escolhida pelo Senhor! No dia do Batismo, Ele me escolheu?. E como dizia Paulo: ?Ele escolheu a mim, desde o seio de minha mãe?.
Tudo isso "são coisas do amor!", comenta o Papa. O amor ?não olha se alguém tem o rosto belo ou feio: ama!?. Jesus faz o mesmo: ?ama e escolhe com amor?. Na lista de Cristo não tem ninguém ?vip?. ?Ele escolhe todos! Não tem ninguém importante ? entre aspas- segundo os critérios do mundo: são pessoas comuns?.
Pessoas comuns, mas com um único denominador: ?são pecadores?. Jesus escolheu os pecadores, enfatiza Francisco. Esta é a acusação que os doutores da lei e os escribas fazem: ?Ele come com os pecadores, fala com as prostitutas...?.
Jesus chama todos! Como na parábola das núpcias do filho, quando os convidados não aparecem, o dono da casa diz aos seus servos: ?Ide e trazei todos à casa! Bons e maus?. Da mesma maneira ?Jesus escolheu todos? e escolheu também Judas Iscariotes, ?que se tornou o traidor ... O maior pecador. Mas foi escolhido por Jesus?.
Por fim, o terceiro momento: ?Jesus próximo do povo?. Em muitos vão até Ele ?para ouvi-lo e serem curados de suas doenças. Toda a multidão procurava tocá-lo?. ?Dele saia uma força que curava todos?. Mas a coisa mais bonita é a atitude de Cristo neste contexto: Ele não se coloca como ?um professor, um mestre, um místico que se afasta do povo e fala da cátedra. Não! Está no meio do povo; se deixa tocar; deixa que as pessoas perguntem?.
Essa proximidade ?não é uma coisa nova para Ele?, explica o Papa. Jesus ?sublinha em seu modo de agir, mas é algo que vem desde a primeira escolha de Deus para o seu povo?.. Deus diz ao seu povo: ?Pensem, qual povo tem um Deus tão próximo como Eu estou próximo de vocês??.
A proximidade de Deus ao seu povo é a ?proximidade de Jesus às pessoas?. ?E isso nos dá confiança Nele, nosso Mestre e Senhor que ? insiste o Papa ? é alguém que reza, alguém que escolhe as pessoas e alguém que não tem vergonha de estar próximo do povo?. E conclui: ?Confiemos n?Ele porque reza, porque nos escolheu e porque está próximo de nós?. 

Desafio da cruz





Dom Paulo Mendes Peixoto
Arcebispo de Uberaba (MG)

A cruz, formada por uma haste vertical e outra horizontal, é o maior símbolo da vida cristã. No tempo do Império Romano era usada como lugar de execução de quem era condenado à morte. Ela aterrorizava as pessoas, porque o condenado ficava agonizando até morrer, e o cadáver ali apodrecia, sem direito de um sepultamento digno. Era humilhação, tortura e considerada uma maldição.

É difícil compreender o fato de um instrumento de tortura, como esse, tornar-se meio para o seguimento de Jesus Cristo. Um símbolo de maldição que se transforma em caminho de salvação. Isto revela a intensidade com que Deus amou o mundo, descendo no mais profundo da realidade humana. Com isto o sofrimento passa a ser expressão visível de amor até às últimas consequências.
Quem ama de verdade, como o fez Cristo, é capaz de superar situações extremas de sofrimento. Somos iguais nos prazeres e nos sofrimentos, na perfeição e nas imperfeiçoes, uns mais e outros menos. Tudo isto fazendo parte do mistério da vida humana, que deve ser encarado com discernimento, equilíbrio, coragem e vontade de vencer. O importante é não perder o rumo da história.
Duas coisas devem pesar na consciência de todos nós: uma é a prática do amor, da doação, da partilha e de atos com responsabilidade; outra, como ofensa ao Criador, é a prática do ódio, da vingança e do desrespeito. A via da cruz pode ser um grande caminho de libertação, porque supõe a interiorização do amor.
Não é fácil amar a quem nos ofende, como não deve ter sido fácil Cristo, na cruz, dizer aos carrascos: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Portanto, a cruz é um desafio, pois ela exige despojamento do poder sem objetivos altruístas e conquista do bem pelo caminho do bem.
Para muitos cidadãos honestos, uma simples eleição pode ser momento de cruz, principalmente por não conseguir visualizar um candidato que seja confiável. Seu voto pode ser causador de sofrimentos e de muitas cruzes durante mais quatro anos.

Critérios do Papa Francisco para o bem Comum e a Paz Social




Dom Roberto Francisco Ferreria Paz
Bispo de Campos (RJ)

No capítulo IV da “Evangelii Gaudium”, o Papa Francisco apresenta quatro grandes postulados da Doutrina Social que podem nos servir neste processo eleitoral como discernimento e reflexão. O primeiro critério é que o tempo é superior ao espaço. Significa nunca deixar a visão de longo prazo, a esperança que sustenta a caminhada e ser capaz de gerar processos, ações que tragam transformações e mudanças profundas. As eleições muitas vezes ficam relegadas a seu contexto imediato priorizando uma política de resultados e não uma dinâmica social de empenhos contínuos e permanentes para o bem comum.

O segundo postulado é que a unidade prevalece sobre o conflito. Neste ponto somos convidados a não ignorar a realidade conflitiva e contraditória, mas trabalhar para a comunhão e reconciliação, construindo uma visão política de superação tanto dos oportunismos como das polarizações estéreis. O cristão é anunciador de uma paz que recapitula tudo em Cristo e no seu Reino, alargando e superando a visão dos interesses conflitivos para a das convergências a nível de Estado, de Nação, construindo pontes e valorizando diferenças numa unidade maior e centrada em valores permanentes.
O terceiro critério nos faz ver que a Realidade é mais importante que a idéia. Aqui o Papa afirma certamente a possibilidade de uma interação positiva entre a idéia e a realidade, mas deve-se evitar cair em idealismos e nominalismos ideológicos que nos tiram a percepção dos fatos e nos afastam das pessoas, etiquetando-as segundo nossa preferência e construto de idéias.
Os cristãos se orientam pela Palavra da verdade, que é real e ilumina todos os ambientes e relacionamentos pessoais e sociais. Finalmente o referencial que o todo é superior a parte. Trabalha-se neste tópico a tensão entre um universalismo abstrato e um localismo bairrista. Torna-se necessário manter as raízes e os pés no chão, mas ter um olhar global e abrangente, sabendo que o todo é superior a soma das partes. As eleições não podem nos fazer esquecer o paradigma maior da civilização humana que está em crise e da perspectiva da grande mudança de época.
Especialmente para os cristãos é exigida a fidelidade a totalidade e integralidade do Evangelho, nos impele a anunciá-lo como Boa Nova da vida plena para todos/as pessoas e criaturas. Como podemos apreciar estes elementos de juízo político contribuem a não nos deixar cair em propagandas eleitorais ilusórias e manipuladoras, estimulando nossa consciência cristã e sócio-política.
Deus seja louvado!

Exaltação da Santa Cruz

O dia 14 de setembro foi dedicado à exaltação da santa cruz, isto é: o triunfo da cruz.
Por Vitaliano Mattioli
CRATO, 12 de Setembro de 2014 (Zenit.org) - Para compreender esta festa devemos voltar a Constantino. Ele havia mandado construir em Jerusalém uma basílica no Gólgota e no Sepulcro de Cristo Ressuscitado. A dedicação desta basílica se realizou a 13 de setembro de 335. No dia seguinte foi mostrado ao povo o lenho da Cruz. Assim, o dia 14 de setembro foi dedicado à exaltação da santa cruz, isto é: o triunfo da cruz.
O símbolo da cruz sacralizou, por séculos, todos os cantos da terra e todas as manifestações sociais e privadas. Atualmente corre o risco de ser varrido ou, pior, instrumentalizado por uma moda de consumo. Hoje com o pretexto de ser um Estado laico, se quer eliminar o símbolo da cruz nos lugares públicos, para não fazer propaganda cristã. Se confunde a sã laicidade do Estado com uma luta anti religiosa que se esforça de impedir ao homem uma relação com a transcendência.     
Mas o principio da laicidade consiste na recíproca autônoma entre a ordem temporal e espiritual. Autonomia não significa indiferença, mas a proibição do Estado de entrar nas questões religiosas e pela autoridade religiosa na preclusão de exercer dentre o Estado um poder temporal. Por isso, o Estado não pode proibir a um crente de mostrar externamente a sua fé com um símbolo de extrema importância e significado.    
Mas, além disso, a cruz  não é só monopólio dos cristãos, desde sempre é o símbolo do sofrimento humano. O crucifixo é o símbolo universal da injustiça humana, ensina a paciência, a compreensão, a solidariedade para com todos que sofrem perseguições e violência. É o sinal mais laico que pode existir. Naquela simples cruz se resume a história do gênero humano, são denunciadas todas as barbáries que o homem perpetrou iniciando do assassinato de Abel até os massacres e genocídios de hoje. 
Natália Ginzburg, agnóstica, escreveu em 1988 que o crucifixo é o sinal do sofrimento humano, faz parte da história da humanidade. Eliminar o crucifixo significa destruir o elemento fundamental da nossa história. Ele não provoca nenhuma discriminação. Está calado, não fala. Tudo suporta por amor. É o sinal da completa doação. Representa todos, também os laicos, os agnósticos e os ateus, porque todos sofrem injustiças.  
Seria bom que este símbolo nos fizesse voltar aos verdadeiros ?crucifixos?: os pobres, doentes, anciãos, explorados, etc. Mas para compreender tudo isso precisa sabedoria. São Paulo escreveu: ?A pregação da cruz é loucura para os que se perdem [...] Nós proclamamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos [...] Cristo é sabedoria de Deus? (I Cor 1, 18, 23-24).
Cristo crucificado e ressuscitado é a nossa única e verdadeira esperança. Fortificados pela sua ajuda, também os seus discípulos se tornam homens e mulheres de esperança. Não de esperanças transitórias e fugazes, que depois deixam cansado e desiludido o coração humano, mas da verdadeira esperança, dom de Deus que, sustentada do alto, tende a conseguir o sumo Bem e está certa de o alcançar. Desta esperança, tem necessidade também o mundo de hoje.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Exegese Patrística até o século IV


Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)

Introdução
Uma análise da exegese nos padres da Igreja até o século IV faz-se necessária para os tempos modernos uma vez que essa não dispunha dos métodos que hoje a leitura dos textos coloca, pois a visão total da Sagrada Escritura nem sempre estava presente aos olhos dos autores cristãos. Nesses primeiros séculos a posse de uma inteira Bíblia como nos tempos atuais era possível para pouquíssimas pessoas. Os exegetas recorriam nas bibliotecas à ajuda da memória e o uso das testemunhas as quais faziam coletas de passos da Sagrada Escritura, reagrupados por categorias temáticas.
No século II delineavam-se alguns problemas para os padres, exegetas pastores entre os quais este: Que coisa serve o AT, do momento que a lei foi suprimida? Entre as soluções extremistas desta pergunta encontramos aquela dos gnósticos (o AT é obra do Deus criador), de Marcião (o AT é obra do Deus justo), dos maniqueus (o AT é um livro mau). Diversos padres da Igreja apresentaram soluções diante dos grupos acima citados: por exemplo, Justino apostou muito sobre o esquema promessa-cumprimento no sentido de que Cristo cumpriu as promessas do AT. Dessa forma o Verbo, que criou o mundo, falou de si mesmo no AT. Tertuliano, Orígenes e Ireneu de Lião colocarão a necessidade da leitura do AT sempre em referência ao NT. Para esses autores, com o termo Sagradas Escrituras se entendia somente o AT, do qual se tirava toda a instrução, submetendo o texto a interpretações alegóricas, literais e tipológicas numa leitura sempre em ligação ao Novo Testamento também considerado Sagrada Escritura.
1. Justino
Foi um dos primeiros a dar normas de interpretação bíblica. Na obra: Diálogo com Trifão, Justino apresenta um debate entre um cristão e um hebreu. Os seus métodos de leitura do AT são completamente diversos; o êxito do Diálogo é de igualdade pois, cada um permanece sobre as próprias posições.
Justino afirma uma nova lei que vem da pessoa de Jesus Cristo, o Verbo encarnado. Toda a profecia compreende um sinal(fatos, palavras) e um sentido que é sempre Jesus Cristo. O profeta por excelência é o Verbo de Deus, predizendo aquilo que aconteceria com a sua encarnação, com a qual a Palavra tornou-se sinal completo.

2. Tertuliano
Tertuliano formulou uma a exegese bíblica cumpridora de um valor essencial no âmbito do cristianismo ocidental. Ele coloca alguns critérios de interpretação:
- A Escritura com a Escritura: esse era um critério típico das obras gramaticais da antigüidade do qual era também válido para Tertuliano; - Qualquer trecho bíblico deve estar em sintonia com os outros trechos.
A interpretação exegética de Tertuliano é literária(De Resurrectione Carnis), um tratado no qual o autor africano polemiza as interpretações alegóricas dos gnósticos a respeito da ressurreição da carne porque estes a negavam. Tertuliano vê a ressurreição como uma verdade fé, que consistirá na reconstituição da carne humana, transformada conforme a nova realidade, espiritual, sobrenatural. Para Tertuliano Adão é figura de Cristo(cf. 1Cor 15,45).
3. Ireneu de Lião
Este autor também deu normas para a interpretação da Sagrada Escritura. No Livro: Contra os Gnósticos, Ireneu demonstra que tem um só Deus, autor seja do AT que do NT, isto é o Verbo de Deus. "Estas são as verdades fundamentais anunciadas pelo Evangelho: um só Deus criador deste universo, que foi anunciado pelos profetas que deu a economia da lei por meio de Moisés, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, fora do qual não conhece outro Deus ou outro Pai" (III, 11,7).
Ireneu determina também como Tertuliano, algumas regras para interpretação bíblica: - Uma frase se interpreta no seu contexto; - ela deve ser interpretada no sentido da regula fidei, a regra da fé, transmitida pela tradição. O centro da sua teologia bíblica é a recapitulação de tudo em Cristo sendo que a interpretação da Sagrada Escritura não é exercício acadêmico, antes ela é uma preparação ao martírio.
4. As duas escolas exegéticas: a Alexandrina e a Antioquena
A nossa análise patrística levam em conta as exegeses praticadas em duas escolas as quais determinaram o pensamento exegético nos séculos posteriores.
Em primeiro lugar analisemos a exegese alexandrina. Nós encontramos como autor importante Orígenes. Ele fez da hermenêutica bíblica uma verdadeira ciência e condicionou toda a exegese sucessiva bem como os seus adversários. Ele é o mestre da alegoria. Ele não se limita a considerar a Escritura como livro divinamente inspirado do Espírito Santo, mas enquanto palavra divina a identifica com Cristo, isto é o Logos. A Sagrada Escritura é a permanente encarnação do Verbo de Deus.
A Sagrada Escritura além do sentido literal dá um sentido espiritual mais profundo que não se consegue captar. Cristo é a chave para interpretar as Escrituras(cf. Contra Celso, 7,11), cuja presença no texto sagrado é o mais das vezes escondida debaixo do véu da leitura. O sentido espiritual das Escrituras identifica-se com o sentido cristológico. Cristo iluminou a Lei e tirou o véu que a cobria(cf. 2Cor 3,14), revelando os seus esplendores.
Ele propôs três visões dos sentidos da Escritura em ligação profunda com a concepção paulina do homem, em Espírito, alma e corpo(cf. 1Ts 5,9). - Os simples, através da leitura; - Os progressivos, pelo sentido moral; - Os perfeitos pelo sentido espiritual.
Nesta escola temos também Clemente de Alexandria. Ele considera a Sagrada Escritura como a voz mesma do Logos divino. Sobre as bases de Filão, diz que toda a palavra escrita tem um fim preciso e que este pode ser escondido sobre o princípio da distinção entre cristãos simples e perfeitos(gnósticos). Clemente valoriza a tipologia tradicional, para se confrontar ao gnosticismo, ao afirmar a unidade dos dois Testamentos e propõe o conceito de revelação progressiva, segundo o qual a vinda do Salvador ocorreu com a origem do mundo, preparado depois pela Lei, pelos profetas e em fim pela presença do Precursor, João Batista.
Em segundo lugar nós temos a exegese antioquena. Esta primou pelo sentido literal da Sagrada Escritura, isto é pela explicação do Antigo Testamento pelo próprio texto, o Antigo Testamento. Ela surgiu em contraposição à escola alexandrina, que valorizava o sentido alegórico.
Os antioquenos formaram outra escola com o fim de contestar os alexandrinos porque havia o perigo de reduzir toda a Bíblia a uma profecia, ou textos proféticos que não o eram no seu sentido histórico original. O caráter desta exegese foi a contraposição de um decisivo literalísmo ao alegorísmo alexandrino. Se os autores alexandrinos interpretavam alegoricamente o AT para encontrar ali a antecipação profética e simbólica de Cristo e da Igreja, os literais antioquenos com o seu literalísmo renunciavam a esta finalidade. Nós encontramos autores nesta escola como Teófilo de Antioquia, Deodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Esses autores procuraram somente dizer o que é desejado pelo autor inspirado.
Ainda que as duas escolas tivessem pontos de vista exegéticos diferentes no fundo elas queriam interpretar o mistério de Cristo presente no AT e revelado no NT a fim de que as pessoas e as comunidades cristãs vivenciassem a Palavra de Deus na sua integridade diante da realidade familiar, social, política e econômica do Império Romano.

5. A formação do Cânon da Sagrada Escritura do AT e do NT
A nossa análise a respeito da exegese patrística dos primeiros quatro séculos tem presentes também a formação do Cânon, a lista dos livros sagrados seja do AT, seja do NT. Uma teoria clássica até os tempos modernos dizia que no primeiro século os hebreus tinham dois cânones; um proveniente da Palestina(mais breve) e outro alexandrino (mais longo, o qual compreendia os livros deuterocanônicos). Na realidade, hoje sabemos que não existiam dois cânones hebraicos, porque no primeiro século os hebreus não tinham fechado o cânon e existiam muitos livros candidatos para entrar na lista dos livros inspirados. Isto deveria realizar-se sem dificuldades se não fosse o desencontro dos cristãos com os gnósticos que levou os judeus a fixar a sua lista de livros sagrados. Naquilo que se refere aos Padres da Igreja, notamos que estes usaram sem problemas os deuterocanônicos até o momento em que estes foram em uso também pelos hebreus(ainda que não oficialmente). Quando estes últimos, no segundo século, os rejeitaram completamente, os Padres foram obrigados a usá-los, na polêmica contra o judaísmo, só os livros condivididos também pelos hebreus. Por isto a aceitação dos deuterocanônicos pela comunidade cristã não se fundamentou sobre a autoridade da sinagoga, antes sobre aquela litúrgica da Igreja.
No segundo século circulavam muitos livros entre as comunidades dizendo-se inspirados ou levavam o nome de algum apóstolo; só alguns destes(27) foram incluídos no cânon do NT, vindo a assumir a mesma autoridade do AT. A seguir são colocados os critérios de escolha que a Igreja levou em consideração para afirmar se um determinado livro era ou não inspirado: apostolicidade, leitura pública litúrgica, leitura pública litúrgica universal e ortodoxia.
Conclusão
A exegese nos Padres da Igreja possibilitou a leitura do mistério teológico em função do cristológico tendo presente o AT e o NT na sua unidade. O Antigo Testamento era lido em comunhão com o Novo Testamento porque era Sagrada Escritura. Para os Padres da Igreja, Cristo Jesus é a realização das promessas feitas no AT. Esta exegese iluminou a vida do povo através das homílias de seus pastores na formação do povo cristão, católico, mas sobretudo, na liturgia eucarística. O mês bíblico nos ajude a ler a Sagrada Escritura como a Palavra de Deus Uno e Trino que guia os nossos passos para sermos discípulos, discípulas, missionários, missionárias de Jesus Cristo no mundo de hoje e em nossas comunidades, paróquias e dioceses.
Bibliografia geral: 
Simonetti, M. Lettera e/o allegoria. SEA, 23, Roma, 1988.
Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Vozes, Petrópolis, 2002.