quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Lava-Pés e São Francisco de Assis


Por Dom Aloísio A. Dilli Ofm 
Bispo de Uruguaiana
02/04/2015
Ao escrever a tese de mestrado, em Liturgia, sobre o Rito do Lava-Pés, estudando sua origem, evolução e teologia-litúrgica, foi possível dar-se conta da complexidade, mas também da profunda riqueza do tema. Além de já estar presente no mundo cultural bíblico-judaico, como rito de acolhida e de hospitalidade, o Lava-Pés recebeu novo sentido com o gesto de Jesus, na Quinta-feira Santa; e através da história, tanto em âmbito litúrgico como extra-litúrgico (monástico), são muitas as interpretações dadas ao rito. Variam também os modos, contextos, freqüências de realizá-lo, dependendo da interpretação, do lugar e da época.
Através do título, acima colocado, queremos ocupar-nos mais com o sentido do Lava-Pés na Sagrada Escritura, especialmente o de Jesus, no contexto da véspera de sua Paixão (Jo 13, 1-17), e relacioná-lo com S. Francisco de Assis e sua espiritualidade. Para tal, teremos que tecer rápidos traços históricos do rito e analisar significados que recebeu. Assim, poderemos entender melhor as poucas, mas significativas, referências do Santo ao Lava-Pés e o sentido que lhe atribuiu.

O sentido do Lava-Pés de Jesus e S. Francisco (Jo 13, 1-17)
A maioria dos exegetas vê no Lava-Pés um gesto de humildade [Katábasis: Katá = de cima de(descer) e basis = base (plano do pé)], de esvaziamento (Kénosis) em que Jesus, chegada “sua hora”, simbolizou e prefigurou a entrega total com a morte na cruz: o extremo ato de amor e obediência ao Pai : ...esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo... tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Flp 2, 6-8). Havia chegado “sua hora” (Kairós), em que Jesus fez uma opção livre, ou seja, dar a vida: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). É “a hora” qualitativa, não cronológica (Krónos), do amor extremo (cf. Jo 13, 1), do serviço máximo (Leitourgía = serviço público, para todos), do despojamento total para salvar a humanidade. Ele mesmo é o Cordeiro da nova Páscoa, a ser imolado no altar da cruz.
O Lava-Pés, portanto, pode ser visto como um “Seméion” (sinal) joanino, ato simbólico que demonstra o que está para acontecer: sua entrega total = morte na cruz.
Certamente, descobrimos, dentro desta contextualização, porque S. Francisco escolheu o Evangelho do Lava-Pés para ser lido na hora de sua morte e porque pediu para ser colocado nu sobre a terra nua, despojado, pobre, sem nada nas mãos, a não ser as chagas do Crucificado... Havia aprendido do Evangelho a ser menor e estar em tudo no seguimento do Cristo pobre, humilde e crucificado. Nos Mistérios da Encarnação (Presépio) , da Cruz (chagas) e da Eucaristia, os que mais contemplou em sua vida, descobriu o amor de Deus que se fez pequeno, humilde, solidário, próximo, para realizar sua missão que possibilitou a nossa comunhão com a vida divina. É o que fez o Santo exclamar: “O amor não é amado” (ou expressões semelhantes) e não cansou de anunciar a todos a infinita misericórdia de Deus, que se fez servo, que lavou os pés dos discípulos... Francisco também quis ser menor, pobre, despojado até o fim, por palavras e obras.
O Lava-Pés no contexto dos Mistérios da Quinta-Feira Santa e a morte de S.Francisco
Já percebemos acima, que o Lava-Pés de Jesus não foi um ato isolado, mas fez parte do contexto da “sua hora”, da hora do amor máximo pela nossa redenção. O ambiente da Quinta-feira Santa, véspera da morte na cruz, foi de despedida, de deixar o essencial, o testamento: o mandamento do amor = dar a vida: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos (Jo 15, 13). Jesus falou e o tornou real no dia seguinte. Quando havia chegado “sua hora”, na véspera, no contexto da Ceia pascal, Jesus realizou o Lava-Pés e instituiu a Eucaristia(Sacerdócio). Ambos indicam para o dia seguinte e relacionam-se com o dar a vida por amor (serviço, caridade); fazem parte do mesmo Mistério. Ambos, embora de modo diverso, indicam profeticamente para a Cruz da Sexta-feira Santa , que se tornará sinal de vida, de vitória, na ressurreição. O Lava-Pés é um gesto simbólico-profético, explicativo, catequético da cruz e da própria Eucaristia (Sacerdócio), que torna presente o Sacrifício da cruz. A Eucaristia (Sacerdócio) é mais do que gesto explicativo: é a presença do próprio Mistério, ou seja, é a antecipação sacramental da Morte-Ressurreição de Jesus: “Isto é o meu Corpo que será entregue por vós... Este é o cálice do meu Sangue... que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados”. E o próprio Sacerdócio também é entendido como serviço que atua, torna presente o Mistério pascal.
É admirável a unidade teológica dos últimos gestos de Jesus, na véspera de sua paixão e morte: o Lava-Pés (Mandamento novo), a Eucaristia, o Sacerdócio indicam profeticamente na mesma direção. E S. Francisco bebeu profundamente desse cálice e quis, também no final de sua vida, “seguir” o Senhor. É dentro deste contexto que devemos ler seus últimos pedidos e gestos: nusobre a terra, leitura do Evangelho do lava-pés, oração do Salmo 142 (141), bênção do pão a ser distribuído, inclusive os estigmas, os quais depois de sua morte se tornaram conhecidos. O Santo de Assis percebeu a unidade dos acontecimentos da Quinta-feira Santa e os quis evocar, celebrar, tornar presente no momento de “sua hora”, do seu passar deste mundo ao Pai. Para quem seguiu o Senhor, tão de perto, tentando identificar-se em tudo com ele, os Mistérios da Encarnação, da Eucaristia (Sacerdócio), da Cruz, do Lava-Pés e Mandamento novo se encontram e formam unidade: Deus é amor = dá a vida. Francisco também a entrega e a chama de “irmã” (cf. Cântico do Irmão Sol, in FFC, o. c., pp. 104-105, n.12).

  • Evolução Bíblica e Litúrgica do Rito do Lava-Pés e o tempo de S. Francisco
Francisco foi um homem inserido no seu tempo, enriquecendo-o com seu carisma, recebido como dom do Espírito, para responder, com valores do Evangelho, a necessidades do seu tempo. Sentiu-se profundamente ligado à Sagrada Escritura e à Liturgia da Igreja, através da qual, sobretudo, encontrou-se com a primeira. Portanto, o Poverello conheceu o uso litúrgico e extra-litúrgico, assim como o sentido do Lava-Pés, difundido na passagem do séc. XII-XIII. O rito, para chegar ao tempo de S. Francisco, já havia percorrido um longo caminho bíblico-cultural, litúrgico, extra-litúrgico e teológico. Vejamos um pouco dessa evolução.
1.Síntese histórica do Rito do Lava-Pés

O Lava-Pés, além de Jo 13, 1-17, é citado várias vezes na Sagrada Escritura. Destacaremos apenas os textos mais importantes. Faremos também rápidas considerações sobre o rito na era patrística, no monaquismo e na Liturgia oficial da Igreja, até o séc. XIII.
  • Gn 18, 4: O Lava-Pés aparece como primeiro e elementar dever de hospitalidade oriental; serviço que competia, normalmente, aos escravos não-judeus. A esposa também podia lavar os pés do esposo; os filhos ao pai e os discípulos ao mestre. Sempre o inferior ao superior. Jesus inverte esta ordem social, cultural, em vista da igualdade, da fraternidade, como já vimos, anteriormente.

  • 1Tim 5, 10: ...a mulher só será aceita no grupo das viúvas... se tiver sido hospitaleira, lavado os pés dos fiéis”. Trata-se, aqui, de um gesto de acolhida, de humilde serviço de hospitalidade, de caridade aos peregrinos cristãos e, sobretudo, aos missionários itinerantes (cf. Rm 10, 15). Portanto, já com novo sentido, a partir de Jesus Cristo. Este texto terá muita influência na era patrística e nos ritos litúrgicos do primeiro Milênio.
  • Era Patrística: Interpretou-se o Lava-Pés, sobretudo, como gesto de caridade (cf. 1Tim 5, 10). Mas, a partir de Jo 13, 10 (texto longo: “...quem tomou banho não tem necessidade de lavar-se, senão os pés, pois está totalmente puro”), aos poucos, deu-se chance a novas interpretações, acrescentando-o junto ao rito do batismo, ou até confundindo-o com o mesmo, dando-lhe caráter sacramental que apaga pecados (purificação: banho = batismo ; lava-pés = perdão dos pecados).

  • Monaquismo: Inicialmente, o Lava-Pés foi feito a todos os hóspedes. Com o crescimento dos Mosteiros e a ligação com o mundo civil (séc. IX), esse “Mandatum Ospitum” (Mandato dos Hóspedes) cedeu lugar ao “Mandatum Pauperum Quotidianum” (Mandato Cotidiano dos Pobres), e deste, mais tarde, chegou-se ao “Mandatum Pauperum in Cena Domini (Mandato dos Pobres na Quinta-feira Santa).
            Do “Mandatum Fratrum” (Mandato dos Irmãos), diário ou semanal, nos Mosteiros, se passa ao “Mandatum Fratrum in Cena Domini” (Mandato dos Irmãos na Quinta-feira Santa).
  • Liturgia Oficial: Os costumes monacais passaram a ser assumidos pelaLiturgia das Catedrais e, aos poucos, recebem relativa uniformização nas diversas Igrejas locais, através dos Pontificais romanos(Livros usados pelo Papa e pelos Bispos). Há uma influência recíproca entre o oficial romano e o local.

Duas tendências interpretativas se destacam:
- Gesto de caridade, de amor: Mandato do Senhor.
- Purificação dos pecados: Presença, durante a realização do rito, de salmos penitenciais, do ósculo da paz e do perdão e de orações, especialmente, da oração “Adesto, domine...” , que surgiu no séc. VIII e permaneceu até às vésperas do Vaticano II.
Percebemos, assim, que referir-se ao Lava-Pés não é privilégio só de S. Francisco. No seu tempo o rito era muito conhecido, com formas e interpretações diversificadas, tanto nos Mosteiros (entre os monges, aos peregrinos, aos pobres...) como na Liturgia oficial, nesta época, já mais sóbria e formal, com tendência a solenizar-se e a perder o rico sentido de serviço humilde (Katábasis). Mas o que nos interessa, no momento, é o sentido que Francisco dá ao Lava-Pés.
2. O sentido do Lava-pés nos escritos de S.Francisco
Surpreende-nos que Francisco, em seus Escritos, não tenha feito nenhuma recomendação direta, solicitando o rito sistemático do Lava-Pés entre os frades e dos frades para os outros. Seria porque não é tão importante o rito repetitivo, como tal (ritualismo), mas sim o seu sentido e a concretização do significado na minoridade – todos irmãos menores – e no serviço humilde, pobre, aos crucificados de seu tempo (os confrades doentes, os pobres, os leprosos...) ? .
            Vejamos os dois textos em que S. Francisco fez referência direta ao Lava-Pés:
  • ‘Não vim para ser servido, mas para servir’ (cf. Mt 20, 28), diz o Senhor. Aqueles que foram constituídos acima dos outros se vangloriem tanto deste ofício de prelado como se tivessem sido destinados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E se mais se perturbam por causa do ofício de prelado que lhes foi tirado do que por causa do ofício de lavar os pés, tanto mais ajuntam para si bolsas para perigo da alma (Adm 4, in FFC, o. c., p. 98).

  • E ninguém se denomine prior, mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos menores. E um lave os pés do outro (cf. Jo 13, 14)” (RnB VI, 3-4, in FFC, p. 170).
Os dois textos não precisam ser analisados separadamente, pois ambos relacionam o sentido do Lava-Pés com o serviço humilde, a minoridade e a vida fraterna: todos sejam “irmãos menores”, e ninguém receba o título de “prior”. Vivam como Irmãos, sem que uns se considerem mais do que os outros, mesmo na função de Ministros, pois estes “sejam servos de todos os irmãos” (RB X, 6). O “ser constituído acima dos outros” seja um serviço humilde, como o Lava-Pés . Do contrário, vai-se contra a pobreza e o “ser servo” do Evangelho, pois o Senhor não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos (cf. Mt 20, 28).
Dois elementos importantes se destacam nos textos de S. Francisco:
  • O serviço humilde (Katábasis, minoridade)
  • O ser fraterno (Mandamento novo).

Chama-nos atenção que Francisco não se deixou contagiar com outras interpretações do Lava-Pés, surgidas através da história, como a purificação, o perdão dos pecados, o pedido de misericórdia, e outros... Ele fica com o essencial: aquilo que claramente o Evangelho revela, sem glosas.
CONCLUSÃO
Mesmo com poucas referências diretas de S. Francisco ao Lava-Pés, podemos concluir que ele, assim como a maioria dos exegetas do nosso tempo, vê no Lava-Pés de Jesus um gesto simbólico, um “semeion” joanino que significa Katábasis – Kénosis = abaixamento, esvaziamento, humildade, pobreza, encarnação(presépio), minoridade (irmãos menores), serviço(ministros e servos)... e que indica para o amor máximo, para a doação total da vida na Cruz redentora, do dia seguinte, que se tornará a “árvore da vida” nova. A Eucaristia (Sacerdócio), de forma sacramental, converge para a mesma direção, pois antecipa, torna presente o Mistério pascal.Lava-Pés e Eucaristia(Sacerdócio), embora de modos diferentes, fazem parte do mesmo Mistério.
Assim entendendo o Lava-Pés, o Santo de Assis, ao chegar “sua hora”, a sua morte, quer ouvir exatamente esse Evangelho de S. João (cf. Jo 13, 1ss.) e ser colocado nu sobre a terra nua, despojado e pobre de tudo, como o Senhor na cruz. Une o Lava-Pés e a morte de Jesus com a sua. Em tudo quer seguir o seu Senhor, até o fim.
As duas frases de seus Escritos, citadas anteriormente, retomam as conseqüências dessa rica espiritualidade e a concretizam no ser menor e no ser irmão, nas relações dentro e para fora desse gênero de vida. Os Ministros são servos, como quem lava os pés dos outros. Ninguém é “prior”, “superior”. Todos são, indistintamente, “irmãos menores”.
Percebe-se que Francisco não se preocupa muito com o rito como tal, ou com o modo e freqüência de realizá-lo, mas com o sentido original, que vem do próprio Evangelho, aquele que manda (Mandatum) realizar o serviço humilde de lavar os pés uns dos outros, ou seja, amar e servir solidariamente como menores entre os menores.

ORAÇÃO
Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor.
Vós sois todo-poderoso, sobretudo na gratuidade de vossa misericórdia, 
manifestada na plenitude dos tempos, por vosso Filho Jesus Cristo.
Ele, para conduzir-nos à comunhão do vosso amor, assumiu nossa condição humana: tornando-se criança no presépio, pois ‘nasceu por nós no caminho’; priorizando os pequenos e sofredores, em sua missão evangelizadora e, chegada ‘a sua hora’, se fez servo humilde no gesto simbólico do lava-pés e entregou-se em comunhão sacramental na Eucaristia, prefigurando por ambos o amor total da morte na cruz, a ‘árvore da vida’.
Fazei que nós, iluminados/as pelo ‘Espírito e seu santo modo de operar’, aprendamos a seguir, na minoridade, o exemplo de vosso Filho Jesus Cristo, pobre, humilde e crucificado, para sermos sinais de esperança e vida entre os menores de nosso tempo.
Pelo mesmo Cristo, nosso Senhor. Amém.