quarta-feira, 22 de abril de 2015

Família e o Sínodo da Família




Dom João Carlos Petrini
Bispo de Camaçari (BA)
 “Eu sou o pão da vida” diz Jesus no Evangelho. “Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim, nunca mais terá sede”. Esta promessa é para nós, nós somos os beneficiários, a nós Jesus doa sua vida divina que vence o mal e a morte. Ele é o “enviado do Pai” para realizar esta promessa. E ainda afirma que toda pessoa que vê o Filho e nele crê, quem se reconhece conectado com Jesus graças ao batismo, ligado com Ele pelos sacramentos da Eucaristia, da Penitência e de toda a vida da Igreja, quem O reconhece presente, este tem a vida eterna. E, além disso, o ressuscitará no final de tudo.
A vida eterna de que fala Jesus é uma qualidade nova de vida já aqui nesta terra. Jesus quer doar a nós uma vida que tenha significado e beleza, que valha a pena, para vivermos com gosto e com alegria (a alegria do Evangelho da qual nos fala o Papa Francisco). Jesus repete muitas vezes essa promessa, por exemplo, quando afirma: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). A grande maioria de nós que agora participamos desta Santa Eucaristia podemos testemunhar que a promessa de Jesus é verdadeira.
O Papa Francisco convocou dois Sínodos, reunindo bispos do mundo inteiro para refletir sobre a família. Ele está preocupado com o mundo atual, que se torna uma babilônia e perde o melhor da vida, perdendo a beleza do amor vivido numa família, constituída por um homem e uma mulher, aberta para gerar filhos e educá-los. E, ao mesmo tempo, o Papa está preocupado com tantas feridas que são produzidas quando o amor é vivido longe do desígnio de Deus.
Em outubro passado, realizou-se o Sínodo Extraordinário e no próximo Outubro haverá o XIV Sínodo ordinário. Todas as comunidades católicas do mundo participaram da preparação, enviando suas contribuições.
Podemos visualizar três grandes tarefas para o Sínodo: 1. Apresentar de maneira renovada o Evangelho da Família, isto é a beleza do amor, caminho para aquela vida em abundância, a vida eterna de que falava o Evangelho de hoje. 2. Enfrentar as feridas, as situações de sofrimento que se criam exatamente pelas maneiras precárias de viver o amor nos dias atuais. 3. Incentivar a dimensão social da família para que possa dialogar com a sociedade, tema não incluindo nos Lineamenta.
Quando acabou de ser criado por Deus, Adão se deparou com a sua solidão originária. Não encontrou nenhum animal que lhe servisse para companhia. Então Deus Disse: “não é bem que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.” (Gn 2,18).
O ser humano foi pensado por Deus desde o princípio para viver em companhia: “homem e mulher Ele os criou”, diz a Sagrada Escritura, o ser humano tem uma estrutura relacional. A condição para a realização da pessoa é “ser para o outro”. O desejo de felicidade pode encontrar a própria satisfação somente através do outro. No entanto, a diferença sexual foi usada muitas vezes para o homem oprimir a mulher. A Igreja está empenhada em corrigir essa mentalidade antiquada que está sendo superada. Isto não elimina a diferença, mas a supera no respeito e na paridade de direitos e de oportunidades, encontrando novas formas de cooperação entre eles e com as novas gerações.  
Em seguida, a Sagrada Escritura nos diz: “Façamos o homem como nossa imagem, como nossa semelhança”. (Gn 1, 26) Para São João Paulo II, o que mais se assemelha à Santíssima Trindade aqui na terra é a família. De fato, na Trindade existe o Pai, existe o Filho e existe o Espírito Santo que é o amor. A dinâmica interna da Trindade é o dom total de si. O Pai se doa ao Filho, o Filho se doa ao Pai e o Espírito é o próprio amor entre os dois. A comunhão entre pessoas imita a Santíssima Trindade e a relação esponsal entre marido e mulher é a mais importante expressão dessa comunhão. A fecundidade, sinal da maturidade humana, encontra aí o seu ambiente mais apropriado e é o fruto deste amor que se doa.
O amor vivido como dom sincero de si é algo grande, que exige algum sacrifício, alguma renúncia. Mas não devemos ter medo disso, pois é a porta estreita que abre o acesso à realização.
Doar a própria vida para o bem e a felicidade de outro não é fácil. Por isso, devemos olhar a Jesus, Ele se doa a nós. São Paulo na carta aos Efésios diz: “Maridos, amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5, 25). Por isto, são tão importantes os sacramentos do matrimônio e da Eucaristia. Estes tornam presente Jesus: a Eucaristia no pão e vinho consagrados, e o Sacramento do Matrimônio torna presente a morte e a ressurreição de Jesus na vida da família. Por isso, a família é uma pequena Igreja, doméstica. Ele se doa a nós (tomai e comei, isto é meu corpo...), ele abraça o amor e o fortalece, tornando-o capaz de acolhimento e perdão, de fidelidade e dá força para recomeçar.
Mas quando o amor é vivido como um lazer e os vínculos são percebidos não como uma graça, mas como uma amarra, quando é rejeitada a responsabilidades pelo outro e recusa-se a gerar filhos, ou quando o amor é vivido com a fragilidade própria dos afetos, não enraizado em Cristo, mesmo quando as intenções ao casar eram as melhores, o individualismo se infiltra, falta paciência, falta misericórdia, então se criam feridas: separações, divórcios, abandonos, solidão, conflitos e brigas que machucam os adultos e ainda mais as crianças.
 Papa Francisco recomenda acompanhar as famílias, acompanhar as pessoas que mais sofrem. A Igreja já disse (na Sacramentum Caritatis) que os divorciados e recasados não estão fora da comunhão eclesial e já indicou as muitas formas como podem participar da vida da Igreja, ainda que não seja possível o acesso à comunhão sacramental.
Não devem ser ignoradas as forças que lutam para desqualificar a família, reduzindo seu significado. Necessitamos nos ajudar para conquistar um olhar mais crítico e usar o poder do dedo para desligar o televisor ou mudar de canal, o poder da palavra para manifestar nossa experiência, para promover uma família consciente do seu valor, uma família cidadã. Para isso vale a pena constituir Associações de Famílias.
A mídia laica tende a empurrar o debate do Sínodo aos polos extremos, apresentando-o como luta entre rigoristas e liberais, como se a problemática fosse apenas o direito dos recasados a receber a eucaristia. Sem descartar esse problema, as situações são muito mais complexas e demandam um grande esforço pastoral para acompanhar casais. O Papa nos recomenta acompanhar as famílias, acompanhar as pessoas que mais sofrem. A Igreja já disse (na Sacramentum Caritatis) que os divorciados e recasados não estão fora da comunhão eclesial e já indicou muitas formas para participar da vida da Igreja, sendo, no entanto, impossível o acesso à comunhão sacramental. Esse tema também, mesmo não sendo central, será discutido no Sínodo.
Abre-se um extraordinário espaço para a Pastoral Familiar e para Movimentos e Novas Comunidades, para testemunhar a beleza e a conveniência da família conforme ao desígnio de Deus, lugar onde as exigências humanas encontram maior correspondência.
A todas as famílias que nos acompanham, recomendamos: convidem Jesus e Maria para que tomem parte de sua vida de família, como fizera o casal de Canaã. E assim, quando faltar o vinho, quando a alegria e o gosto de conviver desaparecem, a Virgem Maria poderá dizer a Jesus: falta o Vinho. E a nós ela diz: Façam tudo o que Ele vos disser. E poderemos, então, presenciar o milagre de uma vida de família que cresce e vai renovando-se na paz e na abundância que Jesus deseja para nós, para que tenhamos a vida eterna.  Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Mercenário



Dom José Alberto Moura
Arcebispo de Montes Claros (MG)


Jesus é o Bom Pastor, contrariamente ao mercenário. Este atua por dinheiro ou outro interesse, talvez até o de roubar ovelhas, não se responsabilizando pelo bem  das que são colocadas a seu cuidado (Cf. João 10,11-18). Não basta alguém se dizer religioso, até freqüentando alguma religião, mas sem compromisso com a verdade, a justiça e a prática do amor ao semelhante. Usar a religião para angariar votos e exercer funções de liderança, mas traindo as pessoas e as comunidades na prática de sua liderança social é funcionar como mercenário.

Quem recebe a missão de cuidar do rebanho e o faz como vocação e amor realiza o bem das ovelhas. Cuida de ir ao encontro de suas necessidades. Não poupa esforços para praticar a justiça. Usa do cargo para tentar fazer o maior bem possível ao redil. Não usa de sua liderança para explorar os súditos, nem desvia seus recursos para fazer seu império próprio, manifestando que é o maior e mais importante! É humilde servidor. Não se enriquece às custas do povo. Sabe dialogar e promover os carismas, atraindo a participação das pessoas para ajudar a promover o bem comum. Dá preferência à promoção de ações para vir ao encontro, em primeiro lugar, das necessidades dos mais fragilizados socialmente.
O líder que é humano e cristão de verdade, segue o exemplo de quem já fez caminho no exercício do bem comum. O maior exemplo é o de Jesus, que deu tudo de si pelo bem da humanidade. Ele nos ensina a humildade, o desprendimento, a fraternidade, o zelo pelas ovelhas, a inclusão social, o respeito à vida, à família e aos mais necessitados. Ele lembra:
“Dou a minha vida” (João 10,17). Quem é eleito para um serviço à comunidade deve estar disposto a também dar de si pelos que nele confiaram o cargo. Ao contrário, se ele se tornar um puro mercenário, pode até conseguir, lícita ou ilicitamente, vantagens com o exercício do cargo, mas mostra pequenez de caráter. Quantos são tidos como ladrões, maus caracteres, bandidos, mentirosos e traidores da causa do povo! Jesus lembra: “Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas” (João 10,13).
Jesus, antes do holocausto na cruz, foi a Jerusalém, entrando triunfalmente nela, montado num jumentinho. Mostrou ser rei pobre. Poderia ir de carruagem, fazendo propagando sobre sua grandeza. Ao contrário, mesmo tendo o poder divino, mostrou seu desprendimento total do que é suntuosidade e grandeza material e social. Seu reino é o da grandeza de alma, com amor total ao semelhante, mesmo se, para isso, dever dar tudo para o bem do outro. Ele praticou e ensinou que o maior é o mais servidor. A lição do lava-pés o caracteriza. Vivemos na turbulência do consumismo e egoísmo exacerbado, em que se mostra que o maior é quem mais se apresenta como importante e tem poder  superior aos outros, mesmo se o fizer com o roubo e a corrupção. Essa prática mercenária invade muito a realidade política, não de todos, mas de grande parcela. Precisamos seguir melhor o Bom Pastor e instar a população para que eleja pessoas com grandeza de caráter, que realmente sigam o exemplo do Mestre para servirem o mesmo povo e não se servirem dele, para que tenhamos mais vida justa, solidária e fraterna. A Campanha da Fraternidade deste ano nos sublinha a necessidade de realmente sermos servidores do semelhante!

terça-feira, 21 de abril de 2015

Urgências na evangelização







Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunida em sua 53ª. Assembleia Geral, em Aparecida, acaba de aprovar as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja em nosso País para os próximos 4 anos. A própria Assembleia Geral quis que não fossem Diretrizes inteiramente novas, mas, uma atualização daquelas que já estavam valendo para os anos 2011 a 2015.
O processo de elaboração das Diretrizes está previsto no Regimento da CNBB: após a avaliação do quadriênio que se encerra, uma Comissão encarregada apresenta um projeto de novas Diretrizes; segue a reflexão em plenário, o trabalho de grupos para apontar eventuais alterações ou complementações; as sugestões são apresentadas e a Comissão procura integrá-las no Projeto das novas Diretrizes que, finalmente, é submetido à votação, parágrafo por parágrafo, dos participantes da Assembleia Geral.
As Diretrizes agora aprovadas mantém suas referências no grande horizonte das Conclusões da Conferência de Aparecida. Ainda há muito estímulo e orientação daquela grande Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe a serem assumidas e levadas à prática, para dinamizar a evangelização no Brasil. A meu ver, trata-se sobretudo da sólida fundamentação cristológica da vida e da ação eclesial e da conversão missionária de toda a Igreja.
Sem estarmos continuamente voltados para Cristo para, novamente, partir dele para a ação própria da Igreja no mundo, corremos o risco de desvirtuar o trabalho da Igreja, de perder a força sobrenatural que anima a vida da Igreja e de contar apenas com projetos humanos, como em qualquer outra iniciativa humana. A Igreja tem sua razão de ser em Jesus Cristo, em sua missão e em sua força salvadora.
Por outro lado, a Igreja existe para a missão, para evangelizar. Por isso mesmo, ela não pode se preocupar apenas pela sua “sobrevivência” ou preservação: ela precisa colocar-se em estado permanente de missão e ser “uma Igreja em saía”, como ouvimos do Papa Francisco. Há ainda muito para se fazer para introduzir esta nova mentalidade em todas as organizações e iniciativas da vida eclesial: na Igreja, tudo tem um objetivo missionário, mesmo quando se trata de defender e alimentar a fé daqueles que já crêem e participam da vida eclesial. A Igreja não pode fechar-se em si mesma, mas precisa ter sempre diante de si o horizonte missionário.
As novas Diretrizes integraram os mais recentes apelos e orientações do Papa Francisco à Igreja. Nas Diretrizes anteriores, ainda não tínhamos o Papa Francisco, nem suas palavras iluminadas e suas orientações apaixonadas para que a Igreja se volte para as questões mais urgentes da missão. As novas Diretrizes estão profundamente impregnadas pelas orientações da Exortação ApostólicaEvangelii Gaudium; mesmo a Bula Apostólica do Ano Santo extraordinário da Misericórdia –Misericordiae Vultus, de 11 de abril passado, já é levada em conta nas novas Diretrizes.
As “urgências da ação evangelizadora” são mantidas e ganham novas motivações: a) a Igreja precisa estar em estado permanente de missão; b) ser casa de iniciação à vida cristã; c) lugar de animação bíblica da vida e da pastoral; d) tornar-se mais e mais uma comunidade de comunidades; e) estar a serviço da vida plena para todos. De fato, essas “urgências” apontam para dimensões, com freqüência, fragilizadas na vida e na ação da Igreja, as quais precisam de urgente revitalização. Pode haver outras ainda: compete a cada diocese verificar quais outras questões precisam de maior atenção evangelizadora.
As Diretrizes da ação evangelizadora no Brasil, aprovadas pela Assembleia Geral da CNBB, oferecem linhas-mestras, que as dioceses e as organizações pastorais poderão seguir no seu próprio planejamento pastoral. Requerem, portanto, a reflexão e a assimilação para cada realidade eclesial específica do nosso País. Com a intercessão de Nossa Senhora Aparecida e as bênçãos de Deus, elas haverão de produzir muitos frutos.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Papa: A vocação cristã é uma chamada de amor

 
 Mensagem do Papa Francisco para o 52º dia mundial de oração pelas vocações


CIDADE DO VATICANO, 14 de Abril de 2015 (Zenit.org) -
 Tema: O êxodo, experiência fundamental da vocação
Amados irmãos e irmãs!
O IV Domingo de Páscoa apresenta-nos o ícone do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas, chama-as, alimenta-as e condu-las. Há mais de 50 anos que, neste domingo, vivemos o Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Este dia sempre nos lembra a importância de rezar para que o «dono da messe – como disse Jesus aos seus discípulos – mande trabalhadores para a sua messe» (Lc 10, 2). Jesus dá esta ordem no contexto dum envio missionário: além dos doze apóstolos, Ele chamou mais setenta e dois discípulos, enviando-os em missão dois a dois (cf. Lc 10,1-16). Com efeito, se a Igreja «é, por sua natureza, missionária» (Conc. Ecum. Vat. II., Decr. Ad gentes, 2), a vocação cristã só pode nascer dentro duma experiência de missão. Assim, ouvir e seguir a voz de Cristo Bom Pastor, deixando-se atrair e conduzir por Ele e consagrando-Lhe a própria vida, significa permitir que o Espírito Santo nos introduza neste dinamismo missionário, suscitando em nós o desejo e a coragem jubilosa de oferecer a nossa vida e gastá-la pela causa do Reino de Deus.
A oferta da própria vida nesta atitude missionária só é possível se formos capazes de sair de nós mesmos. Por isso, neste 52º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, gostaria de reflectir precisamente sobre um «êxodo» muito particular que é a vocação ou, melhor, a nossa resposta à vocação que Deus nos dá. Quando ouvimos a palavra «êxodo», ao nosso pensamento acodem imediatamente os inícios da maravilhosa história de amor entre Deus e o povo dos seus filhos, uma história que passa através dos dias dramáticos da escravidão no Egipto, a vocação de Moisés, a libertação e o caminho para a Terra Prometida. O segundo livro da Bíblia – o Êxodo – que narra esta história constitui uma parábola de toda a história da salvação e também da dinâmica fundamental da fé cristã. Na verdade, passar da escravidão do homem velho à vida nova em Cristo é a obra redentora que se realiza em nós por meio da fé (Ef 4, 22-24). Esta passagem é um real e verdadeiro «êxodo», é o caminho da alma cristã e da Igreja inteira, a orientação decisiva da existência para o Pai.
Na raiz de cada vocação cristã, há este movimento fundamental da experiência de fé: crer significa deixar-se a si mesmo, sair da comodidade e rigidez do próprio eu para centrar a nossa vida em Jesus Cristo; abandonar como Abraão a própria terra pondo-se confiadamente a caminho, sabendo que Deus indicará a estrada para a nova terra. Esta «saída» não deve ser entendida como um desprezo da própria vida, do próprio sentir, da própria humanidade; pelo contrário, quem se põe a caminho no seguimento de Cristo encontra a vida em abundância, colocando tudo de si à disposição de Deus e do seu Reino. Como diz Jesus, «todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna» (Mt 19, 29). Tudo isto tem a sua raiz mais profunda no amor. De facto, a vocação cristã é, antes de mais nada, uma chamada de amor que atrai e reenvia para além de si mesmo, descentraliza a pessoa, provoca um «êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus» (Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est, 6).
A experiência do êxodo é paradigma da vida cristã, particularmente de quem abraça uma vocação de especial dedicação ao serviço do Evangelho. Consiste numa atitude sempre renovada de conversão e transformação, em permanecer sempre em caminho, em passar da morte à vida, como celebramos em toda a liturgia: é o dinamismo pascal. Fundamentalmente, desde a chamada de Abraão até à de Moisés, desde o caminho de Israel peregrino no deserto até à conversão pregada pelos profetas, até à viagem missionária de Jesus que culmina na sua morte e ressurreição, a vocação é sempre aquela acção de Deus que nos faz sair da nossa situação inicial, nos liberta de todas as formas de escravidão, nos arranca da rotina e da indiferença e nos projecta para a alegria da comunhão com Deus e com os irmãos. Por isso, responder à chamada de Deus é deixar que Ele nos faça sair da nossa falsa estabilidade para nos pormos a caminho rumo a Jesus Cristo, meta primeira e última da nossa vida e da nossa felicidade.
Esta dinâmica do êxodo diz respeito não só à pessoa chamada, mas também à actividade missionária e evangelizadora da Igreja inteira. Esta é verdadeiramente fiel ao seu Mestre na medida em que é uma Igreja «em saída», não preocupada consigo mesma, com as suas próprias estruturas e conquistas, mas sim capaz de ir, de se mover, de encontrar os filhos de Deus na sua situação real e compadecer-se das suas feridas. Deus sai de Si mesmo numa dinâmica trinitária de amor, dá-Se conta da miséria do seu povo e intervém para o libertar (Ex 3, 7). A este modo de ser e de agir, é chamada também a Igreja: a Igreja que evangeliza sai ao encontro do homem, anuncia a palavra libertadora do Evangelho, cuida as feridas das almas e dos corpos com a graça de Deus, levanta os pobres e os necessitados.
Amados irmãos e irmãs, este êxodo libertador rumo a Cristo e aos irmãos constitui também o caminho para a plena compreensão do homem e para o crescimento humano e social na história. Ouvir e receber a chamada do Senhor não é uma questão privada e intimista que se possa confundir com a emoção do momento; é um compromisso concreto, real e total que abraça a nossa existência e a põe ao serviço da construção do Reino de Deus na terra. Por isso, a vocação cristã, radicada na contemplação do coração do Pai, impele simultaneamente para o compromisso solidário a favor da libertação dos irmãos, sobretudo dos mais pobres. O discípulo de Jesus tem o coração aberto ao seu horizonte sem fim, e a sua intimidade com o Senhor nunca é uma fuga da vida e do mundo, mas, pelo contrário, «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 23).
Esta dinâmica de êxodo rumo a Deus e ao homem enche a vida de alegria e significado. Gostaria de o dizer sobretudo aos mais jovens que, inclusive pela sua idade e a visão do futuro que se abre diante dos seus olhos, sabem ser disponíveis e generosos. Às vezes, as incógnitas e preocupações pelo futuro e a incerteza que afecta o dia-a-dia encerram o risco de paralisar estes seus impulsos, refrear os seus sonhos, a ponto de pensar que não vale a pena comprometer-se e que o Deus da fé cristã limita a sua liberdade. Ao invés, queridos jovens, não haja em vós o medo de sair de vós mesmos e de vos pôr a caminho! O Evangelho é a Palavra que liberta, transforma e torna mais bela a nossa vida. Como é bom deixar-se surpreender pela chamada de Deus, acolher a sua Palavra, pôr os passos da vossa vida nas pegadas de Jesus, na adoração do mistério divino e na generosa dedicação aos outros! A vossa vida tornar-se-á cada dia mais rica e feliz.
A Virgem Maria, modelo de toda a vocação, não teve medo de pronunciar o seu «fiat» à chamada do Senhor. Ela acompanha-nos e guia-nos. Com a generosa coragem da fé, Maria cantou a alegria de sair de Si mesma e confiar a Deus os seus planos de vida. A Ela nos dirigimos pedindo para estarmos plenamente disponíveis ao desígnio que Deus tem para cada um de nós; para crescer em nós o desejo de sair e caminhar, com solicitude, ao encontro dos outros (cf. Lc 1, 39). A Virgem Mãe nos proteja e interceda por todos nós.
Vaticano, 29 de Março – Domingo de Ramos – de 2015.
Franciscus PP.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

São João Batista de La Salle

São João Batista testemunha para nós a importância do ensino educacional unido à espiritualidade que assim constitui e forma filhos e filhas de Deus autênticos
Por Fabiano Farias de Medeiros
HORIZONTE, 07 de Abril de 2015 (Zenit.org)
“O exemplo causa impressão muito maior que as palavras no coração e na mente das crianças. É preciso que vossos exemplos instruam vossos alunos muito mais que vossas palavras." Este é um dos grandes ensinos deste grande educador e santo.
Nascido em 30 de abril de 1651 na cidade de Reims, descende de uma família tradicional da França. Seu pai era Louis de La Salle, conselheiro do Rei e sua mãe Nicolle Moet. João Batista era o primeiro de 11 irmãos que foram criados durante uma época onde as riquezas eram benefício de poucos e imperava uma grande pobreza religiosa e educacional, mas graças a vigorosa educação católica que receberam puderam encaminhar-se pelo caminho de justiça e santidade.
João Batista estudou em Reims  e concluído os primeiros estudos, formou-se em Filosofia e Teologia na Universidade de Reims e na Sorbona, em Paris. O impulso vocacional no coração de João Batista o encaminhou a receber as ordens menores em 17 de Março de 1668 em Reims. Após a morte de seus pais recebeu o subdiaconato em 11 de Julho de 1672 e o foi ordenado sacerdote em 9 de Abril de 1678.
Diante das dificuldades vividas em sua época, João Batista empreendeu grandes esforços no campo educacional e religioso. Em 1679, João Batista alugou uma casa e fundou uma escola gratuita na qual acolheu professores e definiu um pioneiro regulamento de definição e aplicação do Ensino Fundamental. Fundava então no ano de 1684 a Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs com o objetivo de atender aos pobres das ruas.
Neste apostolado educacional desenvolveu diversas inovações no método de ensino que até hoje são utilizados. Desenvolveu a chamada Teologia da Educação que consiste em obras sobre a educação escolar e espiritual. Destacamos o “Guia para Escolas Cristãs”, um dos melhores livros de pedagogia do século XVII. Para João Batista a escola que ele criou devia ser: cristã, renovada, adaptada, formadora e fraternal.
Faleceu no dia 7 abril de 1719, em Rouen, e foi canonizado pelo Papa Pio X no ano 1900 e proclamado "padroeiro celeste, junto a Deus, de todos os educadores", pelo papa Pio XII.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Lava-Pés e São Francisco de Assis


Por Dom Aloísio A. Dilli Ofm 
Bispo de Uruguaiana
02/04/2015
Ao escrever a tese de mestrado, em Liturgia, sobre o Rito do Lava-Pés, estudando sua origem, evolução e teologia-litúrgica, foi possível dar-se conta da complexidade, mas também da profunda riqueza do tema. Além de já estar presente no mundo cultural bíblico-judaico, como rito de acolhida e de hospitalidade, o Lava-Pés recebeu novo sentido com o gesto de Jesus, na Quinta-feira Santa; e através da história, tanto em âmbito litúrgico como extra-litúrgico (monástico), são muitas as interpretações dadas ao rito. Variam também os modos, contextos, freqüências de realizá-lo, dependendo da interpretação, do lugar e da época.
Através do título, acima colocado, queremos ocupar-nos mais com o sentido do Lava-Pés na Sagrada Escritura, especialmente o de Jesus, no contexto da véspera de sua Paixão (Jo 13, 1-17), e relacioná-lo com S. Francisco de Assis e sua espiritualidade. Para tal, teremos que tecer rápidos traços históricos do rito e analisar significados que recebeu. Assim, poderemos entender melhor as poucas, mas significativas, referências do Santo ao Lava-Pés e o sentido que lhe atribuiu.

O sentido do Lava-Pés de Jesus e S. Francisco (Jo 13, 1-17)
A maioria dos exegetas vê no Lava-Pés um gesto de humildade [Katábasis: Katá = de cima de(descer) e basis = base (plano do pé)], de esvaziamento (Kénosis) em que Jesus, chegada “sua hora”, simbolizou e prefigurou a entrega total com a morte na cruz: o extremo ato de amor e obediência ao Pai : ...esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo... tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Flp 2, 6-8). Havia chegado “sua hora” (Kairós), em que Jesus fez uma opção livre, ou seja, dar a vida: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). É “a hora” qualitativa, não cronológica (Krónos), do amor extremo (cf. Jo 13, 1), do serviço máximo (Leitourgía = serviço público, para todos), do despojamento total para salvar a humanidade. Ele mesmo é o Cordeiro da nova Páscoa, a ser imolado no altar da cruz.
O Lava-Pés, portanto, pode ser visto como um “Seméion” (sinal) joanino, ato simbólico que demonstra o que está para acontecer: sua entrega total = morte na cruz.
Certamente, descobrimos, dentro desta contextualização, porque S. Francisco escolheu o Evangelho do Lava-Pés para ser lido na hora de sua morte e porque pediu para ser colocado nu sobre a terra nua, despojado, pobre, sem nada nas mãos, a não ser as chagas do Crucificado... Havia aprendido do Evangelho a ser menor e estar em tudo no seguimento do Cristo pobre, humilde e crucificado. Nos Mistérios da Encarnação (Presépio) , da Cruz (chagas) e da Eucaristia, os que mais contemplou em sua vida, descobriu o amor de Deus que se fez pequeno, humilde, solidário, próximo, para realizar sua missão que possibilitou a nossa comunhão com a vida divina. É o que fez o Santo exclamar: “O amor não é amado” (ou expressões semelhantes) e não cansou de anunciar a todos a infinita misericórdia de Deus, que se fez servo, que lavou os pés dos discípulos... Francisco também quis ser menor, pobre, despojado até o fim, por palavras e obras.
O Lava-Pés no contexto dos Mistérios da Quinta-Feira Santa e a morte de S.Francisco
Já percebemos acima, que o Lava-Pés de Jesus não foi um ato isolado, mas fez parte do contexto da “sua hora”, da hora do amor máximo pela nossa redenção. O ambiente da Quinta-feira Santa, véspera da morte na cruz, foi de despedida, de deixar o essencial, o testamento: o mandamento do amor = dar a vida: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos (Jo 15, 13). Jesus falou e o tornou real no dia seguinte. Quando havia chegado “sua hora”, na véspera, no contexto da Ceia pascal, Jesus realizou o Lava-Pés e instituiu a Eucaristia(Sacerdócio). Ambos indicam para o dia seguinte e relacionam-se com o dar a vida por amor (serviço, caridade); fazem parte do mesmo Mistério. Ambos, embora de modo diverso, indicam profeticamente para a Cruz da Sexta-feira Santa , que se tornará sinal de vida, de vitória, na ressurreição. O Lava-Pés é um gesto simbólico-profético, explicativo, catequético da cruz e da própria Eucaristia (Sacerdócio), que torna presente o Sacrifício da cruz. A Eucaristia (Sacerdócio) é mais do que gesto explicativo: é a presença do próprio Mistério, ou seja, é a antecipação sacramental da Morte-Ressurreição de Jesus: “Isto é o meu Corpo que será entregue por vós... Este é o cálice do meu Sangue... que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados”. E o próprio Sacerdócio também é entendido como serviço que atua, torna presente o Mistério pascal.
É admirável a unidade teológica dos últimos gestos de Jesus, na véspera de sua paixão e morte: o Lava-Pés (Mandamento novo), a Eucaristia, o Sacerdócio indicam profeticamente na mesma direção. E S. Francisco bebeu profundamente desse cálice e quis, também no final de sua vida, “seguir” o Senhor. É dentro deste contexto que devemos ler seus últimos pedidos e gestos: nusobre a terra, leitura do Evangelho do lava-pés, oração do Salmo 142 (141), bênção do pão a ser distribuído, inclusive os estigmas, os quais depois de sua morte se tornaram conhecidos. O Santo de Assis percebeu a unidade dos acontecimentos da Quinta-feira Santa e os quis evocar, celebrar, tornar presente no momento de “sua hora”, do seu passar deste mundo ao Pai. Para quem seguiu o Senhor, tão de perto, tentando identificar-se em tudo com ele, os Mistérios da Encarnação, da Eucaristia (Sacerdócio), da Cruz, do Lava-Pés e Mandamento novo se encontram e formam unidade: Deus é amor = dá a vida. Francisco também a entrega e a chama de “irmã” (cf. Cântico do Irmão Sol, in FFC, o. c., pp. 104-105, n.12).

  • Evolução Bíblica e Litúrgica do Rito do Lava-Pés e o tempo de S. Francisco
Francisco foi um homem inserido no seu tempo, enriquecendo-o com seu carisma, recebido como dom do Espírito, para responder, com valores do Evangelho, a necessidades do seu tempo. Sentiu-se profundamente ligado à Sagrada Escritura e à Liturgia da Igreja, através da qual, sobretudo, encontrou-se com a primeira. Portanto, o Poverello conheceu o uso litúrgico e extra-litúrgico, assim como o sentido do Lava-Pés, difundido na passagem do séc. XII-XIII. O rito, para chegar ao tempo de S. Francisco, já havia percorrido um longo caminho bíblico-cultural, litúrgico, extra-litúrgico e teológico. Vejamos um pouco dessa evolução.
1.Síntese histórica do Rito do Lava-Pés

O Lava-Pés, além de Jo 13, 1-17, é citado várias vezes na Sagrada Escritura. Destacaremos apenas os textos mais importantes. Faremos também rápidas considerações sobre o rito na era patrística, no monaquismo e na Liturgia oficial da Igreja, até o séc. XIII.
  • Gn 18, 4: O Lava-Pés aparece como primeiro e elementar dever de hospitalidade oriental; serviço que competia, normalmente, aos escravos não-judeus. A esposa também podia lavar os pés do esposo; os filhos ao pai e os discípulos ao mestre. Sempre o inferior ao superior. Jesus inverte esta ordem social, cultural, em vista da igualdade, da fraternidade, como já vimos, anteriormente.

  • 1Tim 5, 10: ...a mulher só será aceita no grupo das viúvas... se tiver sido hospitaleira, lavado os pés dos fiéis”. Trata-se, aqui, de um gesto de acolhida, de humilde serviço de hospitalidade, de caridade aos peregrinos cristãos e, sobretudo, aos missionários itinerantes (cf. Rm 10, 15). Portanto, já com novo sentido, a partir de Jesus Cristo. Este texto terá muita influência na era patrística e nos ritos litúrgicos do primeiro Milênio.
  • Era Patrística: Interpretou-se o Lava-Pés, sobretudo, como gesto de caridade (cf. 1Tim 5, 10). Mas, a partir de Jo 13, 10 (texto longo: “...quem tomou banho não tem necessidade de lavar-se, senão os pés, pois está totalmente puro”), aos poucos, deu-se chance a novas interpretações, acrescentando-o junto ao rito do batismo, ou até confundindo-o com o mesmo, dando-lhe caráter sacramental que apaga pecados (purificação: banho = batismo ; lava-pés = perdão dos pecados).

  • Monaquismo: Inicialmente, o Lava-Pés foi feito a todos os hóspedes. Com o crescimento dos Mosteiros e a ligação com o mundo civil (séc. IX), esse “Mandatum Ospitum” (Mandato dos Hóspedes) cedeu lugar ao “Mandatum Pauperum Quotidianum” (Mandato Cotidiano dos Pobres), e deste, mais tarde, chegou-se ao “Mandatum Pauperum in Cena Domini (Mandato dos Pobres na Quinta-feira Santa).
            Do “Mandatum Fratrum” (Mandato dos Irmãos), diário ou semanal, nos Mosteiros, se passa ao “Mandatum Fratrum in Cena Domini” (Mandato dos Irmãos na Quinta-feira Santa).
  • Liturgia Oficial: Os costumes monacais passaram a ser assumidos pelaLiturgia das Catedrais e, aos poucos, recebem relativa uniformização nas diversas Igrejas locais, através dos Pontificais romanos(Livros usados pelo Papa e pelos Bispos). Há uma influência recíproca entre o oficial romano e o local.

Duas tendências interpretativas se destacam:
- Gesto de caridade, de amor: Mandato do Senhor.
- Purificação dos pecados: Presença, durante a realização do rito, de salmos penitenciais, do ósculo da paz e do perdão e de orações, especialmente, da oração “Adesto, domine...” , que surgiu no séc. VIII e permaneceu até às vésperas do Vaticano II.
Percebemos, assim, que referir-se ao Lava-Pés não é privilégio só de S. Francisco. No seu tempo o rito era muito conhecido, com formas e interpretações diversificadas, tanto nos Mosteiros (entre os monges, aos peregrinos, aos pobres...) como na Liturgia oficial, nesta época, já mais sóbria e formal, com tendência a solenizar-se e a perder o rico sentido de serviço humilde (Katábasis). Mas o que nos interessa, no momento, é o sentido que Francisco dá ao Lava-Pés.
2. O sentido do Lava-pés nos escritos de S.Francisco
Surpreende-nos que Francisco, em seus Escritos, não tenha feito nenhuma recomendação direta, solicitando o rito sistemático do Lava-Pés entre os frades e dos frades para os outros. Seria porque não é tão importante o rito repetitivo, como tal (ritualismo), mas sim o seu sentido e a concretização do significado na minoridade – todos irmãos menores – e no serviço humilde, pobre, aos crucificados de seu tempo (os confrades doentes, os pobres, os leprosos...) ? .
            Vejamos os dois textos em que S. Francisco fez referência direta ao Lava-Pés:
  • ‘Não vim para ser servido, mas para servir’ (cf. Mt 20, 28), diz o Senhor. Aqueles que foram constituídos acima dos outros se vangloriem tanto deste ofício de prelado como se tivessem sido destinados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E se mais se perturbam por causa do ofício de prelado que lhes foi tirado do que por causa do ofício de lavar os pés, tanto mais ajuntam para si bolsas para perigo da alma (Adm 4, in FFC, o. c., p. 98).

  • E ninguém se denomine prior, mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos menores. E um lave os pés do outro (cf. Jo 13, 14)” (RnB VI, 3-4, in FFC, p. 170).
Os dois textos não precisam ser analisados separadamente, pois ambos relacionam o sentido do Lava-Pés com o serviço humilde, a minoridade e a vida fraterna: todos sejam “irmãos menores”, e ninguém receba o título de “prior”. Vivam como Irmãos, sem que uns se considerem mais do que os outros, mesmo na função de Ministros, pois estes “sejam servos de todos os irmãos” (RB X, 6). O “ser constituído acima dos outros” seja um serviço humilde, como o Lava-Pés . Do contrário, vai-se contra a pobreza e o “ser servo” do Evangelho, pois o Senhor não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos (cf. Mt 20, 28).
Dois elementos importantes se destacam nos textos de S. Francisco:
  • O serviço humilde (Katábasis, minoridade)
  • O ser fraterno (Mandamento novo).

Chama-nos atenção que Francisco não se deixou contagiar com outras interpretações do Lava-Pés, surgidas através da história, como a purificação, o perdão dos pecados, o pedido de misericórdia, e outros... Ele fica com o essencial: aquilo que claramente o Evangelho revela, sem glosas.
CONCLUSÃO
Mesmo com poucas referências diretas de S. Francisco ao Lava-Pés, podemos concluir que ele, assim como a maioria dos exegetas do nosso tempo, vê no Lava-Pés de Jesus um gesto simbólico, um “semeion” joanino que significa Katábasis – Kénosis = abaixamento, esvaziamento, humildade, pobreza, encarnação(presépio), minoridade (irmãos menores), serviço(ministros e servos)... e que indica para o amor máximo, para a doação total da vida na Cruz redentora, do dia seguinte, que se tornará a “árvore da vida” nova. A Eucaristia (Sacerdócio), de forma sacramental, converge para a mesma direção, pois antecipa, torna presente o Mistério pascal.Lava-Pés e Eucaristia(Sacerdócio), embora de modos diferentes, fazem parte do mesmo Mistério.
Assim entendendo o Lava-Pés, o Santo de Assis, ao chegar “sua hora”, a sua morte, quer ouvir exatamente esse Evangelho de S. João (cf. Jo 13, 1ss.) e ser colocado nu sobre a terra nua, despojado e pobre de tudo, como o Senhor na cruz. Une o Lava-Pés e a morte de Jesus com a sua. Em tudo quer seguir o seu Senhor, até o fim.
As duas frases de seus Escritos, citadas anteriormente, retomam as conseqüências dessa rica espiritualidade e a concretizam no ser menor e no ser irmão, nas relações dentro e para fora desse gênero de vida. Os Ministros são servos, como quem lava os pés dos outros. Ninguém é “prior”, “superior”. Todos são, indistintamente, “irmãos menores”.
Percebe-se que Francisco não se preocupa muito com o rito como tal, ou com o modo e freqüência de realizá-lo, mas com o sentido original, que vem do próprio Evangelho, aquele que manda (Mandatum) realizar o serviço humilde de lavar os pés uns dos outros, ou seja, amar e servir solidariamente como menores entre os menores.

ORAÇÃO
Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor.
Vós sois todo-poderoso, sobretudo na gratuidade de vossa misericórdia, 
manifestada na plenitude dos tempos, por vosso Filho Jesus Cristo.
Ele, para conduzir-nos à comunhão do vosso amor, assumiu nossa condição humana: tornando-se criança no presépio, pois ‘nasceu por nós no caminho’; priorizando os pequenos e sofredores, em sua missão evangelizadora e, chegada ‘a sua hora’, se fez servo humilde no gesto simbólico do lava-pés e entregou-se em comunhão sacramental na Eucaristia, prefigurando por ambos o amor total da morte na cruz, a ‘árvore da vida’.
Fazei que nós, iluminados/as pelo ‘Espírito e seu santo modo de operar’, aprendamos a seguir, na minoridade, o exemplo de vosso Filho Jesus Cristo, pobre, humilde e crucificado, para sermos sinais de esperança e vida entre os menores de nosso tempo.
Pelo mesmo Cristo, nosso Senhor. Amém.