Por Card. Dom Orani Tempesta, O.Cist.
RIO DE JANEIRO, 30 de Junho de 2014 (Zenit.org) -
No próximo dia 6 de agosto iremos
comemorar 36 anos da Páscoa do Papa Paulo VI, que no dia 19 de outubro será
beatificado pelo Papa Francisco, na Praça de São Pedro,em Roma. Elepermaneceu à
frente da Igreja de1963 a1978, de modo que teve, enquanto sucessor de Pedro, um
bom tempo – quinze anos – para exercer seu ministério como Bispo de Roma e,
portanto, Sumo Pontífice da Igreja Católica.
Coube a ele – diplomata e pastor, que após servir na Secretaria de Estado da
Santa Sé de 1922 a 1954, e na Arquidiocese de Milão, de 1954 a 1963 – a árdua
missão de conduzir os trabalhos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1963-1965),
iniciados por seu imediato antecessor, São João XXIII. Esta missão, nobilíssima
por sinal, rendeu ao Papa Montini grandes alegrias, mas também não poucos
dissabores. Recorrências comuns de uma fase pós-conciliar na vida da Igreja.
Como quer que seja, pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que Paulo VI foi um
grande Pontífice e, apesar de todos os sofrimentos que o cercaram, não se deixou
abater, mas, ao contrário, refugiado na oração pessoal, especialmente pela
recitação do Rosário de Nossa Senhora, e comunitária, a Liturgia das Horas e a
Santa Missa, encontrou, até o fim de seus dias neste mundo, forças para guiar a
Barca do Senhor, que é a Igreja.
Elevado à Cátedra de Pedro em 21 de junho de 1963, deu a conhecer ao mundo,
em 6 de agosto de 1964, seu programa de Pontificado por meio da Encíclica
Ecclesiam Suam [a Sua Igreja] ao escrever que “A Igreja deve entrar em
diálogo com o mundo em que vive.. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem,
faz-se colóquio. (...) Em qualquer esforço que o homem faça para compreender a
si mesmo e ao mundo, pode contar com a nossa simpatia; onde quer que as
assembleias dos povos se reúnam para determinar os direitos e deveres do homem,
sentimo-nos honrados, quando no-lo permitem, tomando lugar nelas” (n. 38 e
54).
O historiador da Igreja, Henrique Cristiano José de Matos, escreve que ao
atender o desejo colegiado dos Padres Conciliares, reunidos em Roma, Paulo VI “o
fez com a preocupação de não romper com a tradição eclesiástica. Interveio
pessoalmente em todas as questões polêmicas. Nesse sentido, podemos citar a
Nota Prévia (nov. de 1964, acrescentada à Constituição Lumen
Fidei, que visava a reafirmar a doutrina do Concílio Vaticano I sobre o
Papado; a Encíclica Mysterium Fidei (1965) sobre a Eucaristia,
corrigindo os debates sobre a transubstanciação; a Encíclica Humanae
Vitae, sobre a questão do controle de natalidades e do planejamento
familiar [na verdade, “paternidade responsável”, dizemos com a Igreja] (1968); a
intervenção sobre o celibato sacerdotal, cuja discussão fora subtraída ao
Concílio (Sacerdotalis Caelibatus, 1967; Sínodo dos Bispos, 1971:
Documento sobre o Ministério Sacerdotal); intervenção sobre o papel da mulher na
Igreja (Comissão de Estudos para o Ano da Mulher), 1975” (Introdução à
História da Igreja. Belo Horizonte: O Lutador, 1987, p. 168).
Paulo VI foi um Papa aberto às questões da Igreja de seu tempo, fiel às
pegadas do Vaticano II. Implementou o diálogo com o mundo moderno, com outros
cristãos (ecumenismo) e com outras religiões (diálogo interreligioso); defendeu
a paz mundial; empreendeu viagens internacionais, sendo o primeiro Papa depois
de Pedro a estar em Jerusalém, no ano de 1964; deu impulso à colegialidade dos
Bispos instituindo o Sínodo deles em 1975; reformou parcialmente a eleição do
Sumo Pontífice e a escolha dos Bispos; abriu ainda mais a Cúria Romana para
Cardeais não italianos e criou a Comissão Teológica Internacional (CTI).
Com essas atuações, que poderiam assomar-se a muitas outras, Paulo VI,
segundo o historiador citado acima, fez duas coisas ou agiu em duas frentes,
para dentro e para fora da Igreja. Sim, “por um lado, realizou a ingente tarefa
de renovar a Igreja na sua vida interna, dando-lhe instrumentos válidos para o
trabalho de atualização, enriquecendo-a de orientações adequadas para a formação
dos sacerdotes, dos religiosos e do laicato, adaptando a liturgia de acordo com
os desejos do Concílio, criando uma viva consciência missionária, estimulando a
formação de vários organismos que levam os membros da Igreja a uma participação
maior na sua vida e na sua caminhada, não deixando nenhum setor sem sua
presença, sua palavra, seu incentivo e seu admirável equilíbrio de moderador,
fiel ao que é intangível sem deixar de ser fiel aos apelos dos tempos
novos”.
“Por outro lado, soube o Papa Paulo VI abrir-se para o mundo inteiro,
conseguindo que a Igreja fosse o que dela profetizou Isaías: ‘Um estandarte
levantado no meio das Nações’ (Is 11,12). É difícil sintetizar aqui tudo o que
ele fez na área do ecumenismo, em relação às Igrejas do Oriente e do Ocidente;
com as culturas da Ásia e da África; suas viagens à Índia, à Austrália, às
Filipinas, à América Latina, à ONU. De fato, esteve presente no mundo, levando a
mensagem do Evangelho, a palavra da justiça, o apelo da paz. Paulo VI parece ter
herdado de seu predecessor João XXIII a vontade de atravessar as fronteiras, de
procurar o diálogo em vez de lançar anátemas” (idem, p. 168-169).
Apesar de tudo isso, como já acenamos, Paulo VI foi chamado de “o Papa do
sofrimento”, dados os dissabores que enfrentou dentro e fora da Igreja na fase
imediatamente seguinte ao Concílio. Se isso é real, podemos dizer, a justo
título, que Montini foi também “o Papa da verdadeira alegria que vem do
Senhor”..
Para evocar o lado sereno e feliz desse Pontífice, que em breve será
beatificado, desejamos lembrar aqui um documento pouco conhecido, mas de grande
profundidade espiritual, que foi assinado por ele em 9 de maio de 1975. Trata-se
da Exortação Apostólica Gaudete in Domino, que, em português, significa
Alegrai-vos no Senhor!, escrita por Paulo VI em preparação à solenidade
de Pentecostes do Ano Jubilar de 1975.
Nessa Exortação, o Santo Padre começa dizendo, com fundamento em Filipenses
4,45 e no Salmo 145,18: “Alegrai-vos no Senhor, porque Ele está perto de todos
os que O invocam com sinceridade” e a partir daí vai desenvolvendo a noção da
alegria cristã, que é a alegria no Espírito Santo como um dom d’Ele mesmo para
cada um de nós (cf. Gl 5,22), mas que é, não raras vezes, esquecido, como se ser
cristão e ser santo fosse ter cara feia e triste. Aliás, duas constatações vêm
ao caso a propósito: a primeira lembra aquele dito popular, às vezes também
atribuído a algum santo: “Um santo triste é um triste santo”; a segunda é a fala
do Papa Francisco, no dia 1º de junho de 2013, quando diz, recordando,
inclusive, Paulo VI, que “muitas vezes os cristãos têm mais cara de que estão
num cortejo fúnebre do que louvando a Deus”, mas isso está errado, pois “sem a
alegria, o cristão não pode ser livre, mas, ao contrário, torna-se escravo da
tristeza”.
É precisamente este o ponto em que os Papas Bergoglio e Montini se encontram,
uma vez que, na conclusão da Gaudete in Domino se lê: “Irmãos e filhos
caríssimos: não será normal que a alegria habite dentro de nós, quando os nossos
corações contemplam e descobrem de novo, na fé, os seus motivos fundamentais? E
estes motivos são simples, aliás: tanto amou Deus o mundo, que lhe deu o seu
Filho único. Pelo seu Espírito, a sua presença não cessa de envolver-nos na sua
ternura e de nos impregnar com a sua vida; e nós caminhamos para a
transfiguração ditosa das nossas existências, seguindo rumo à ressurreição de
Jesus. Sim, seria muito estranho que esta Boa-Nova que provoca os aleluias da
Igreja não nos deixasse com o semblante de pessoas salvas!”
Isso posto, surge uma pergunta comum e interessante: mas, afinal, que tipo de
alegria é a cristã? – Responde, então, Paulo VI, citando São Tomás de Aquino,
que a expressão mais elevada da alegria ou da felicidade é aquela entendida no
sentido estrito da palavra, “quando o homem, ao nível de suas faculdades
superiores, encontra a sua satisfação na posse de um bem conhecido e amado.
Assim, o homem experimenta a alegria quando se encontra em harmonia com a
natureza, e, sobretudo, no encontro, na partilha, na comunhão com o outro. Com
muito mais razão, pois, chegará ele a conhecer a alegria e a felicidade
espiritual quando o seu espírito entra na posse de Deus, conhecido e amado como
o bem supremo e imutável” (Summa Theologica, I-II, q.31,a 3).
No entanto, novamente, pode haver quem tente contradizer o Papa dizendo que,
neste mundo finito e dilacerado por discórdias, é praticamente impossível
encontrar a felicidade. Daí responder Paulo VI que a questão, de certo modo,
parece contraditória porque está mal colocada. Com efeito, pensa-se que a
felicidade ou a alegria está no ter... Ter carros bons, casas, dinheiro,
artefatos técnicos, enfim coisas materiais, quando, na realidade, a verdadeira
alegria vem de outra fonte, é espiritual, por isso nenhum bem material, por
maior que seja, pode comprá-la ou conquistá-la.
É por essa razão que, mergulhado no materialismo, o ser humano dos séculos XX
e XXI se sente impotente ante os males, especialmente os de ordem moral que os
acomete, pois os recursos de natureza material de que dispõe são ineficientes
para a batalha. Mais: se essa angústia é grande, há ainda outro agravante que o
Papa, já em 1975, denunciou: são alguns meios de comunicação de massa que
“acabrunham as consciências, sem lhes apresentar, normalmente, uma solução
humana adequada”.
Contudo, apesar dos não poucos e nem pequenos desafios, Paulo VI nos convida
a olharmos maravilhados, desde a nossa infância até a velhice, para tudo o que
Deus fez e sentirmos a serena alegria que só Ele pode nos dar como um dom do
Espírito Santo, conforme se lê em Gálatas 5,22. E acrescenta que “o homem só
poderá experimentar a verdadeira alegria espiritual quando se afastar do pecado
e viver na presença de Deus. A carne e o sangue são, sem dúvida, incapazes disso
(cf. Mt 16,17). Mas a revelação pode abrir esta perspectiva e a graça pode
operar esta conversão” no coração humano, às vezes petrificado pelo pecado, por
meio do sacramento da Penitência.
Paulo VI recorda nessa exortação o Apóstolo das gentes: “Estou cheio de
consolação, estou inundado de alegria no meio de todas as tribulações” (7,3-4).
Elas mostram que, mesmo entre as intempéries da vida, o verdadeiro discípulo de
Cristo jamais perde a esperança, pois está inundado da alegria do Espírito
Santo.
Possa, portanto, a Virgem Maria, invocada em sua Ladainha como sendo a “Causa
de nossa alegria”, interceder por nós para que nossa vida, inundada pela força
do Espírito de Deus, seja fonte de verdadeira alegria e felicidade para nós e
para todos os que nos cercam. Amém!
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro,
RJ
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