terça-feira, 21 de outubro de 2014

Pequenas comunidades






Nos últimos anos, especialmente a partir da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (2007), que produziu o luminoso Documento de Aparecida (DAp); depois os diversos Documentos e Estudos emanados da CNBB, as dioceses, paróquias e comunidades no Brasil têm nessas publicações ampla orientação para a definição dos objetivos pastorais e consequente escolha das prioridades, elaboração dos projetos e metas de seu Plano de Pastoral para os próximos anos (cf. DGAE 2011-2015 n. 136). Não seria possível imaginar as dioceses e paróquias elaborarem hoje seu plano de ação evangelizadora, a revelia do que mais incisivamente se propõe a nível nacional e latino-americano.

O episcopado reforça a elevada natureza e missão das paróquias: “Entre as comunidades eclesiais, nas quais vivem e se formam os discípulos e missionários de Jesus Cristo, sobressaem as paróquias. São células vivas da Igreja e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e de comunhão eclesial. São chamadas a ser casas e escolas de comunhão” (DAp n. 170; DGAE 2008-2010 n. 156). Mas fala também que elas precisam ser renovadas: “A renovação das paróquias, no início do terceiro milênio, exige a reformulação de suas estruturas, para que elas sejam uma rede de comunidades e de grupos capazes de se articular, conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DAp n. 172; DGAE 2008-2010 n. 156).

Para que nas paróquias se forme aquela rede de comunidades e de grupos, o DAp propõe concretamente: “Levando em consideração as dimensões de nossas paróquias, é aconselhável a setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e coordenação, que permitam maior proximidade com as pessoas e grupos que vivem na região. É recomendável que os agentes missionários promovam a criação de comunidades de famílias que fomentem a colocação em comum de sua fé e das respostas aos problemas” (n. 172; SD n. 58; DGAE 2008-2010 n. 157). Veja-se que neste n. 157 diz que a setorização das paróquias em unidades territoriais menores não é um dos caminhos, mas o caminho. As DGAE 2011-2015 também reconhecem ser este o caminho inevitável (cf. n. 62).

Em 2008 a CNBB publicou também o documento 88 Projeto Nacional de Evangelização: o Brasil na Missão Continental, que diz: “A progressiva setorização e descentralização das estruturas pastorais, transformando as paróquias em rede de comunidades, ajudará a passar corajosamente de uma pastoral de manutenção para uma pastoral decididamente missionária” (Paulinas, p. 16-17; CNBB p. 19; cf. DAP n. 365-370). O mesmo documento se refere, muitas vezes, de forma direta e indireta aos grupos de reflexão e círculos bíblicos, pequenas comunidades, como meio concreto de realizar o auspicioso projeto.

As atuais DGAE afinam com as orientações anteriores, quando, na apresentação das indicações de operacionalização das diretrizes (n. 121-138), expondo os sete passos metodológicos (n. 126-138), no último passo fala da importância em mudar as estruturas pastorais (cf. n. 137-138). Encera o corpo desse documento do episcopado com algo extremamente importante, dizendo que, no tocante às estruturas pastorais, “à luz do apelo do Documento de Aparecida, em prol de uma Igreja em estado permanente de missão, se apresenta o grande desafio de renovação da paróquia, através de sua setorização em unidades menores, tendo à frente uma equipe de coordenação integrada por leigos e leigas e, dentro dos setores, a criação de comunidades de famílias” (n. 138; cf. DAp n. 372).

O documento de Estudo n. 104 da CNBB “Comunidade de Comunidades: uma nova Paróquia”, emanado da 51ª Assembleia Geral, em Aparecida/SP, da 10 a 19 de abril de 2013, fala de forma não somente tangencial desses grupos de reflexão-oração-ação ou grupos de famílias, verdadeiras pequenas comunidades, mas trata desse tema reiteradas vezes (cf. n. 153-154, 157, 213-215). Mas é na 52ª Assembleia Geral de Aparecida/SP, ocorrida de 30 de abril a 9 de maio de 2014 que essa temática das pequenas comunidades ocupa um lugar de realce especial (cf. o Documento n. 100 da CNBB “Comunidade de Comunidades: uma nova Paróquia”, sobre a conversão pastoral da Paróquia, especialmente os n. 8, 136,191,246-247, 249, 252-254, 256, 278, 288-289, 294, 307, 319ª). É um tema tão central que, no 6º e último capítulo, quando apresenta as proposições pastorais, logo de início propõe as pequenas comunidades (n. 244-256). Não enxergar a importância central que o documento dá a essas pequenas comunidades é lê-lo em chave errada, de forma preconceituosa e com mente fechada. O referido Documento deixa assim evidente que a constituição das pequenas comunidades, como o caminho para a renovação paroquial, não é um sonho de um grupo do episcopado nacional, mas um imperativo de toda a Igreja do Brasil. 

Vale ainda lembrar que a Carta Eucarística de Florianópolis à Igreja no Brasil, emanada do 15º Congresso Eucarístico Nacional, realizado em 2006, já propunha como um dos quatro compromissos “...tornar nossas comunidades mais eucarísticas, através do ministério da visitação às famílias, dos grupos de oração e de reflexão bíblica, e da opção decidida pelos pobres”.

As comunidades são, pois, convocadas (cf. DAp n. 179; DGAE 2011-2015 n. 61) para que se organize, concretamente, a estrutura da paróquia em dezenas ou até em centenas de pequenas comunidades, chamadas também de grupos de famílias, grupos de vivência, grupos de reflexão-oração-ação, tornando-se para isso indispensável a organização cuidadosa dos grupos, a preparação diligente dos seus coordenadores e a escolha ou elaboração criteriosa dos conteúdos para os encontros. Há décadas já existem práticas muito fecundas nesse sentido, mesmo que ainda restritas a paróquias, dioceses e regionais mais pioneiros.

Em Santa Catarina (Regional Sul 4 da CNBB) a Igreja tem os grupos de reflexão como prioridade número 1. Na cartilha “Igreja nas Casas”, elaborada pela Arquidiocese de Florianópolis em 2002, diz: “Em sintonia com a CNBB Regional Sul 4, a Arquidiocese de Florianópolis vem aprovando e confirmando desde 1999, em suas assembleias de pastoral, os grupos de reflexão e a formação de lideranças como prioridade de nossa ação evangelizadora” (p. 7). Mais adiante expressa essa convicção: “Quanto mais grupos de reflexão houver em nossa igreja arquidiocesana, mais estaremos sendo fiéis ao Espírito Santo! Quanto mais grupos de reflexão houver entre nós, mais a Igreja estará em nossas casas, mais pessoas estarão sendo atingidas e fortificadas pelo Espírito Santo!” (p. 8). O mesmo livreto apresenta depois uma sucinta, mas substanciosa e convincente fundamentação bíblica, trinitária, eclesiológica e pastoral dos grupos de reflexão. Dom Orlando Brandes, atual arcebispo de Londrina-PR, quando bispo de Joinville (1994-2006) teria “revolucionado” esta diocese, através da pastoral da família baseada nos grupos bíblicos.

No Paraná (Regional Sul 2 da CNBB) há também uma grande solicitude para com essa atividade pastoral. Dom João Bosco Barbosa de Sousa OFM, presidente daquele Regional, na Apresentação do livrinho para grupos da Quaresma e Páscoa de 2012, fundamenta assim essa atividade: “Desde o tempo dos apóstolos, os cristãos guardaram o costume de reunir-se nas casas, para encontrar o Senhor na partilha da palavra, na oração, no testemunho de vida e na fraternidade. As pequenas comunidades que se reúnem ao redor da Palavra de Deus, contam com a presença do próprio Jesus, como ele garantiu” (cf. Mt 18,20). Depois continua: “Hoje há uma grande insistência de nossa Igreja de que todos participem permanentemente de pequenos grupos, em torno da Palavra de Deus e da oração, fazendo da Igreja uma ´comunidade de comunidades`” (p.1). Naquele Regional existe uma equipe que elabora três roteiros anuais para os encontros quinzenais dos grupos, atingindo os três ciclos litúrgicos: do Natal, da Páscoa e do Tempo Comum. E, a fim de ajudar a animar os grupos, para cada sete livretos é também disponibilizado um CD com cânticos e testemunhos. 

No Rio Grande do Sul (Regional Sul 3 da CNBB) se realizou em 2007 o I Forum da Igreja Católica, envolvendo todas as dioceses então existentes. No final do evento foi publicada a “Carta do I Forum da Igreja Católica no RS”, que a certa altura diz: “Observa-se, como consenso, para conduzir com efetividade o que no I Forum já se alcançou, diante da realidade estrutural e contextual que se vive, ser necessária a constituição de equipes de ação-reflexão para ajudar na operacionalização das ações antevistas”. Não é isso um aceno ao trabalho pastoral voltado para esses grupos? Há alguns anos este Regional elabora livretos para encontros de grupos, mas restritos ao tempo do Advento e da Quaresma. Falta ainda para muitos bispos, presbíteros e outras lideranças eclesiais das dioceses do Regional verem este trabalho como prioridade pastoral, deixar-se entusiasmar por essa iniciativa, fornecer subsídios para o ano inteiro, depois difundir e implantar este projeto em todas as paróquias e comunidades das Igrejas particulares. Recentemente o bispo de Caxias do Sul reconheceu como desafio para sua diocese a multiplicação, nas paróquias e capelas, de pequenas comunidades dentro das comunidades (cf.Correio Riograndense de 03/09/2014).

No terceiro milênio, com a grave tendência de crescimento do individualismo, do materialismo e do ateísmo, que facilmente reduzem a religião à esfera privada, ou a julgam menos importante ou até sem sentido, urge que as dioceses, para além da restrita pastoral de conservação, façam lançar todas as paróquias com entusiasmo e esperança em missão, fazendo um trabalho capilar de base com as famílias, igrejas domésticas, procurando inseri-las em grupos de reflexão. Reconhecem os bispos do Brasil: “A setorização da paróquia pode favorecer o nascimento de comunidades, pois valoriza os vínculos humanos e sociais. Assim, a Igreja se faz presente nas diversas realidades, vai ao encontro dos afastados, promove novas lideranças, e a iniciação cristã acontece no ambiente em que as pessoas vivem” (DGAE 2011-1015, n. 62). Essa atividade com grupos, quando integra, além dos casais, famílias inteiras, isto é, pais e filhos, crianças, jovens adultos e idosos, torna-se na verdade, essa sim, Pastoral da Família. Não será esse o caminho que (re)conduzirá muitas famílias para a participação regular na comunidade maior?

O Papa emérito, Bento XVI, quando ainda cardeal, já alertava que é preciso superar o “medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas, na verdade, a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez” (Palavras de Joseph Ratzinger na conferência no Encontro de Presidentes de Comissões Episcopais da América Latina para a Doutrina da Fé, Guadalajara, México, 1996, e reproduzidas no DAp n. 12 e nas DGAE 1011-1015 n. 3). Clérigos e leigos são assim alertados para não ficarem instalados numa zona de conforto, perdendo todo o entusiasmo pastoral, rejeitando qualquer novo desafio, sepultando o profetismo na Igreja. Não dá para viver na felicidade por comodismo!

Projetos ao mesmo tempo concretos e exequíveis, audazes e entusiasmantes, de sólido fundamento, ampla abrangência e razoável continuidade poderão ser capazes de reverter o processo de descristianização e desumanização, tirar os agentes de pastoral do descrédito e desânimo, estimular a tão desejada conversão pessoal que leve à conversão pastoral, renovando as paróquias e dioceses e fazendo acontecer a Missão Continental. (Texto original escrito e divulgado já em 2008 com o título “Igreja nas Casas”, reelaborado e ampliado com as publicações mais recentes)

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