A constante identificação do catolicismo como o obstáculo a se abater na cultura atual, por ser responsável por um monoteísmo que difunde a violência religiosa no mundo, é injustificável.
Por Pe. Anderson Alves
RIO DE JANEIRO, 26 de Junho de 2014 (Zenit.org) -
Resta-nos responder a uma pergunta: o
politeísmo é essencialmente tolerante? Existem hoje diversos autores que aplicam
a metáfora do politeísmo religioso à democracia civil, falando assim de um
“politeísmo de valores”. O politeísmo seria um antídoto à violência, enquanto
que o monoteísmo é essencialmente intolerante e opressivo.
Na verdade a violência por motivos religiosos é a corrupção da religião.
Trata-se de um fenômeno grave e sério, mas – é relevante notar – que não foi
estranho ao politeísmo antigo (nem ao atual), no qual ocorriam lutas entre os
deuses e os homens. Qual foi a tolerância que se deu na época da violenta
perseguição do imperialismo grego perante a religião judaica (cf. 1 Mac 1-14; 2
Mac 3-10)? Lembremos também que a religião politeísta do Império Romano, com o
seu conceito de cidadania, sua estrutura multi-étnica, multirreligiosa,
perseguiu o judaísmo e especialmente o cristianismo, culpado de rejeitar a
veneração do imperador como figura divina. A resposta cristã àquelas injustiças
foi precisamente o testemunho não violento e a aceitação do martírio. Lembremos
que nas sociedades antigas, quando um povo conquistava outro, a primeira coisa a
ser destruída era o templo, o qual significava que o “deus” dos conquistadores
era mais forte daquele dos vencidos. A segunda coisa destruída era a
“biblioteca” daquele povo. O politeísmo “relativista” antigo e atual gera, na
verdade, ataques à religião e uma verdadeira destruição da memória e da
cultura.
Além disso, no mundo ocidental secularizado, multiplicam-se os mais estilos
de vida inspirados numa violência espontânea, imediata e destrutiva, e isso vem
sendo cada vez mais justificado eticamente. Ao mesmo tempo observa-se um
enfraquecimento «no respeito pela vida, pela intimidade da consciência, pela
salvaguarda da igualdade, pela paixão racional por um empenhamento ético
partilhado e pelo respeito da autêntica consciência religiosa» (n. 13). Pode
causar surpresa que sejam justamente as “religiões monoteístas” apontadas como
uma das principais matrizes de um absolutismo violento e desestabilizante para a
harmonia civil, quando a violência cresce exatamente em contextos secularizados.
O esquematismo que liga o monoteísmo à violência e o politeísmo à tolerância não
supera, pois, o exame histórico, é simplório e surge do preconceito racionalista
segundo o qual existe um único modo de afirmar a verdade: negar a liberdade ou
eliminar o antagonista.
A constante identificação do catolicismo como o obstáculo a se abater na
cultura atual, por ser responsável por um monoteísmo que difunde a violência
religiosa no mundo, é injustificável. Especialmente porque o catolicismo é
atacado principalmente onde ele é mais conhecido: no mundo ocidental, construído
graças ao humanismo cristão e no qual existe um número imenso de obras
caritativas dirigidas pelos católicos.
No fundo, a denúncia contra o monoteísmo surge de motivações ocultas: a
defesa de um ateísmo claramente professado e de uma concepção imanentista e
naturalista do humano. Mas como os “ateísmos de Estado” deixaram milhões de
mortos, feridos e escravos, algo que permanece vivo na consciência ocidental,
busca-se então atribuir ao adversário os próprios erros e desgraças. Porém,
«mesmo se nos convencermos de que não existe um Deus perante o qual todos os
homens são iguais, o horizonte do pensamento de Deus é, apesar de tudo, tão
indispensável à consciência humana que ele, “esvaziado” do seu legítimo
ocupante, permanece à disposição do delírio de omnipotência do homem. Alguém ou
até algo (a raça, a nação, a facção, o partido, a tradição, o progresso, o
dinheiro, o corpo, o gozo) acaba por ocupar o lugar deixado vazio por Deus. A
revelação bíblica anuncia-o e a história demonstra-o: o homem hostil ao Deus bom
e criador, na obsessão de se “tornar como Ele”, converte-se num “Deus perverso”
e depravado em face dos seus semelhantes» (n. 14). E desse “Deus perverso”, que
dimana do pecado desde a origem, nada pode vir de bom para a pacífica
convivência entre os homens.
Sendo assim, a radical advertência perante o uso despótico e violento da
religião pertence ao núcleo originário da revelação de Jesus Cristo. A confissão
do fato de que o único Deus se deixa reconhecer na unidade do supremo mandamento
do amor a Deus e ao próximo ilumina a autêntica fé no Único Deus. De modo que «a
unidade indissolúvel do mandamento evangélico do amor de Deus e do próximo
estabelece e confere o grau de autenticidade da religião. Em toda a religião. E
também em todo o pretenso humanismo, religioso ou não religioso» (n. 17). É
nesse mandamento que reconhecemos Deus, que se torna visível. Em Cristo temos a
perfeita revelação de Deus e nele contemplamos a perfeição do homem que
corresponde intimamente a Deus.
[i] O documento ao
qual se refere esse artigo pode ser acessado em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20140117_monoteismo-cristiano_po.html
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