Atualmente afirma-se que o monoteísmo é fonte de intolerância e violência, porém, esse pensamento é uma verdadeira forma de totalitarismo anticristão
Por Pe. Anderson Alves
RIO DE JANEIRO, 25 de Junho de 2014 (Zenit.org) -
No dia 16 de janeiro de 2014 a
Pontifícia Comissão Teológica Internacional publicou um extenso e
importante documento, elaborado entre 2009 e 2014: “Deus Trindade, unidade
dos homens: o monoteísmo cristão contra a violência”[i]. Consiste em um
estudo do discurso cristão sobre Deus, defrontando-se com a tese segundo a qual
haveria uma relação intrínseca entre monoteísmo e violência. Atualmente
afirma-se que o monoteísmo, por acreditar ser o detentor de uma verdade
absoluta, é fonte de intolerância e violência. Por sua vez, o politeísmo seria
intrinsecamente tolerante e fundamental para a democracia. Esse pensamento
pretende defender um relativismo religioso absoluto, mas acaba se revelando como
uma verdadeira forma de totalitarismo anticristão.
O documento responde duas questões: como a teologia católica pode se
confrontar criticamente com a opinião cultural e política que estabelece uma
relação intrínseca entre monoteísmo e violência? E como a fé no único Deus pode
ser reconhecida como princípio e fonte do amor entre os homens?
O texto afirma que a fé cristã reconhece na excitação à violência em nome de
Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo chega a esta convicção a
partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega através de
Jesus Cristo. O capítulo primeiro – que expomos aqui – esclarece a noção de
monoteísmo, apresentada geralmente de modo demasiado vago. Então se afirma que
as guerras interreligiosas e também a guerra contra a religião são totalmente
insensatas[ii].
Sendo assim, é preciso reconhecer Deus como «princípio e o fim» da existência
de cada pessoa e de toda comunidade humana. Por sua vez, o homem é naturalmente
capaz de reconhecer Deus como criador do mundo e como seu interlocutor pessoal.
Nesse sentido, afirma-se a existência do homo religiosus, a qualé
deduzível da experiência religiosa dos homens.
A partir de então, podemos questionar: há um nexo necessário entre o
monoteísmo e a violência? Uma pergunta estranha, pois justamente o Ocidente
considerou por séculos o “monoteísmo” a forma de religião culturalmente mais
evoluída, por ser o modo de pensar o divino mais congruente com os princípios da
razão. De fato, a unicidade de Deus é acessível à filosofia – desde Sócrates,
Platão, Aristóteles até o Deísmo moderno – e foi identificada como princípio da
razão natural que precede as tradições históricas das religiões.
Ocorre que a cultura contemporânea reage às grandes ideologias do século XX,
as quais pretenderam ser científicas e dirigidas a um progresso indefinido.
Houve então um predomínio da busca pela verdade, a qual justificou concepções
filosóficas e políticas que levaram a humanidade ao abismo das duas grandes
guerras mundiais. Em oposição a isso, hoje se tende a privilegiar a pluralidade
das visões sobre o bem e sobre o justo, sem buscas pela verdade. Isso gera a
tensão entre o reconhecimento do pluralismo e um princípio relativista.
De fato, conhecer e respeitar as diferenças culturais «representa uma
vantagem para a valorização das singularidades e para a abertura a um estilo
hospitaleiro da convivência humana». Porém, há um grave problema: o mero
respeito às diferenças sem uma busca pela verdade gera a impossibilidade do
diálogo. De modo que as pessoas e os grupos «são induzidos à desconfiança – se
não à indiferença perante o empenho em buscar o que é comum à dignidade do
homem» (n. 4).
Isso significa que o relativismo e o chamado “politeísmo dos valores” não
podem ser o fundamento da democracia e do respeito pela dignidade humana, porque
geram incomunicabilidade, desconfiança, indiferença pela verdade e desprezo por
aquilo que une os homens: a mesma dignidade de pessoa. O relativismo é fruto da
perda de confiança na razão humana e gera a suspeita em relação às outras
pessoas, assim como uma perda de motivações.. Uma sociedade relativista é uma
sociedade apática, pois todas as escolhas humanas são, no fundo, indiferentes.
Isso faz com que as relações humanas sejam abandonadas «a uma gestão anônima e
burocrática da convivência civil» (ibid.). Consequentemente, se dá o
crescimento de uma imagem pluralista da sociedade e a afirmação de um desígnio
totalitário do pensamento único: surge então o discurso “politicamente correto”.
O relativismo se revela como uma máscara que esconde um secreto absolutismo[iii].
Para o relativismo a verdade é considerada uma ameaça radical para a
autonomia do sujeito e para a abertura da liberdade, porque a pretensão de uma
verdade objetiva e universal, se bem que acessível ao espírito humano, é
imediatamente associada a uma pretensão de posse exclusiva por parte de um
sujeito ou grupo. A ideia de que a busca da verdade seja necessária para o bem
comum é tida por ilusória. Na atual compreensão, a verdade estaria
inseparavelmente relacionada com a “vontade de poder”, por isso a “verdade”,
principalmente a religiosa, passa a ser vista como raiz de conflito e de
violência.
O colapso cultural da atualidade é tão grave que afirma ser o monoteísmo
arcaico e despótico, enquanto o politeísmo seria criativo e tolerante. A dita
crítica se concentra na denúncia radical do cristianismo, justamente a religião
que aparece como protagonista na busca de um diálogo de paz, tanto com as
grandes tradições religiosas quanto com as culturas laicas. Certamente, o fato
dos cristãos serem descaradamente associados por sua fé no Deus Único a uma
“semente da violência” fere milhões de autênticos crentes, especialmente porque
eles vivem totalmente afastados da pregação da violência. Além disso, em muitas
partes do mundo, os cristãos são maltratados com a intimidação e a violência por
causa exclusivamente da sua fé. Estima-se que atualmente 200 milhões de cristãos
são perseguidos no mundo, algo que ocorre diante do silêncio cúmplice de boa
parte dos governos e meios de comunicação, que se empenham em difundir uma visão
distorcida do cristianismo como o grande incentivador de violência[iv]. Evidentemente não
se pode negar o preocupante fenômeno da “violência religiosa”, a atual “ameaça
terrorista”. Mas também não se pode ignorar que são precisamente os cristãos que
mais sofrem violências no mundo.
[i] O documento
pode ser acessado em: http://www.vatican..va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20140117_monoteismo-cristiano_po.html
[ii] O capítulo II
trata as chamadas “páginas difíceis” da Bíblia, ou seja, aquelas em que a
revelação de Deus surge envolvida nas formas da violência entre os homens; o
capítulo III oferece um aprofundamento do evento da morte e da ressurreição de
Jesus, central para a reconciliação entre os homens; o quarto capítulo fornece
uma clarificação das aproximações e implicações filosóficas do pensamento de
Deus, discutindo com o ateísmo atual; o último capítulo trata os elementos
cristãos que definem o empenho do testemunho eclesial na reconciliação dos
homens com Deus e de uns com os outros. Pois o cristianismo é consciente de que
a «revelação cristã purifica a religião, porque lhe restitui o seu significado
fundamental para a experiência humana do sentido».
[iii] O Papa
Francisco recentemente também falou do totalitarismo relativista. Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium, n. 231: «Por isso, há que postular um
terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias
formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do
relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais,
os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os
intelectualismos sem sabedoria».
[iv] Os dados são
do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, organizados pela
Ajuda à Igreja que Sofre (AIS). Cfr. http://www..news.va/pt/news/milhares-de-cristaos-sao-perseguidos-no-mundo-mas
também: http://www.zenit.org/pt/articles/200-milhoes-de-cristaos-sao-perseguidos-no-mundo
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