terça-feira, 16 de setembro de 2014

A missão nos primeiros dois seculos do cristianismo


 Dom Vital Corbellini

Bispo de Marabá (PA)

           Introdução
            Iluminados pela Palavra de Deus, impulsionados pela Conferência de Aparecida e pelas Diretrizes da CNBB 2011-2015, no momento atual fala-se bastante, com muita alegria e disposição de espírito, sobre o discipulado, a missão na Igreja e no mundo. Algumas pastorais e alguns movimentos descobriram pelo batismo que são missionários e missionárias, fazendo missão, pela acolhida, visitas às famílias e às comunidades.  A Palavra do Senhor Jesus encarna-se nas pessoas e nos povos. Esses temas estavam também presentes nos primeiros tempos do cristianismo. Eles ganharam sua consideração, porque as pessoas, uma vez convertidas, proclamavam aos outros as maravilhas de Deus em Jesus acontecidas nela. É importante fazer uma análise de como esses dados foram vivenciados, proclamados por muitos povos que se encantaram pela missão cristã.

            1. A missão a partir de escritores cristãos
Esse período (os primeiros dois séculos) firma a missão em quase todos os cantos do Império Romano através da divulgação da mensagem de Jesus aos pagãos, de modo a constituir seguidores e comunidades. A missão é mais urbana que rural, dando-se mais no Oriente que no Ocidente. Pelos autores cristãos há notícias de algumas comunidades onde havia serviços próprios, como os diáconos, os presbíteros, os bispos, e muitos leigos e leigas comprometidos.
 Clemente Romano escreveu, no final do primeiro século, para os Coríntios, exortando-os para unidade, uma vez que houve ali uma revolta contra os dirigentes da comunidade, presbíteros e bispos, os assim “eleitos de Deus”. Ele tem presente, sobretudo Cristo, que veio a este mundo para servir e ajudar as pessoas a se encontrarem na alegria e no amor. “Ele carrega nossos pecados e sofre por nós. E nós o contemplamos entregue ao sofrimento, à dor e aos maus-tratos. Ele foi ferido por causa de nossos pecados e maltratado por causa de nossas iniqüidades”.  
 Em Inácio de Antioquia há notícias, pelas suas cartas, da missão que prosseguia pelo mundo afora. Na sua visão, os bispos eram a imagem do Pai, os presbíteros, a assembléia dos apóstolos, e os diáconos a imagem de Jesus Cristo. Ele deseja que todos trabalhem pela unidade da Igreja diante dos gnósticos, docetas ou mesmo judaizantes. Essa unidade é dada também pela eucaristia, pelo fato de ter uma só carne em Jesus Cristo, um só cálice, e um único altar.  Nesse período, ganhou muito estima a figura de Policarpo, bispo de Esmirna. Sem dúvida, ele influenciou a sua comunidade na fé e na organização dos serviços eclesiais e sociais. Dele nós também temos uma carta dirigida aos Filipenses, onde ele coloca o dever dos esposos, das viúvas, dos diáconos, dos jovens e dos presbíteros. Ele foi uma pessoa de muita fé em Jesus Cristo de modo a morrer por ele. Prova disso foi a sua resposta diante do chefe da polícia que insistia em que renegasse a sua fé. Ele replicou: “Eu o sirvo há oitenta e seis anos, e ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu rei que me salvou?”
No II século, o cristianismo se estabeleceu sempre mais nas cidades e também na campanha. Ele era proclamado junto ao povo pagão, através de pessoas simples e de mestres, que fundavam escolas em vista da conversão cristã. Um desses foi Justino do qual encontram-se dados importantes a respeito da missão. Ele diz que os cristãos são ateus dos deuses dos pagãos, mas não “do Deus verdadeiríssimo, pai da justiça, do bom senso e das outras virtudes, no qual não há mistura de maldade. A Ele e ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com razão e verdade, e ensinando, generosamente, a quem deseja sabê-lo, a mesma coisa que aprendemos”.  
 Ora, os cristãos não eram pessoas violadoras de deveres sociais. Segundo Justino, eles pagavam os tributos e contribuições, antes dos próprios pagãos nos lugares estabelecidos por eles, porque assim foi ensinado por Cristo Jesus.  Através desse autor, sabe-se, desde o início do II século, que os cristãos encontravam-se no domingo, dia do Senhor, para a celebração eucarística e a continuidade da vivência da palavra de Jesus em suas vidas. No primeiro dia da semana, ou o dia do Sol, celebrava-se um encontro daqueles que moravam, seja nas cidades, seja nos campos, e lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.  Oferece-se pão, vinho, água, e o presidente faz subir a Deus suas preces e ações de graças. Em seguida, há a distribuição e participação de cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes, através dos diáconos sendo distribuído a órfãos e viúvas, aos que passavam por necessidades, aos que estavam nas prisões, forasteiros, e todos os que se aproximavam da comunidade para receber alguma ajuda.
Justino reconhece também que o Verbo (Lógos spermatikós) semeou sementes da verdade em outros povos, de modo que a missão foi acontecendo anteriormente pela ação divina e humana. Assim todos aqueles que viveram as normas do Verbo estão ligados a ele, ou mesmo os filósofos que buscaram a verdade e não a puderam perceber na sua integridade, viveram as normas do cristianismo. Se a verdade está no cristianismo, segundo Justino,  eles a contemplaram, em parte, e por isso estão ligados aos bens do Senhor Jesus. Dessa forma, esse autor do segundo século foi muito feliz em colocar a missão como obra de Deus em meio ao mundo pagão, onde a Igreja estava sempre mais ganhando forças.
   2. O significado e a identificação da missão cristã no Império – Causas da conversão cristã
         Um fato essencial é que a missão aconteceu no Império romano que não era a-religioso; pelo contrário, estavam presentes diversos deuses em contexto social marcado pelo politeísmo. A veneração dos deuses era um dos deveres dos cidadãos em relação ao Estado, constituindo um elemento importante do direito romano. Tudo isso visava uma religião de salvação e de utilidade pública.  Levanta-se a pergunta: por que o mundo antigo se converteu ao cristianismo e não permaneceu no contexto pagão ou seguiu a filosofia platônica ou ainda manifestou simpatia ao judaísmo?  Se de um lado, é impossível aduzir um único motivo pelo qual os pagãos buscavam o cristianismo, de outro lado, é possível decifrar algumas causas que levaram as pessoas a assumirem essa nova religião:
A busca da verdade: é o desejo de todos os seres humanos, em todos os tempos. Jesus tinha dito que a verdade liberta as pessoas (cf. Jo 8,32).  Para o cristão, a verdade é o Cristo, o Filho de Deus encarnado. Alguns autores converteram-se por essa busca da verdade contida no cristianismo, o Cristo, a presença de Deus. Justino de Roma fala da busca pela verdade. Tertuliano converteu-se ao cristianismo motivado pela verdade. Deus é o Deus verus; e a verdade é o objeto de ódio dos demônios.
      A busca pela liberdade que vem do próprio Cristo. Essa é uma outra causa em vista da conversão cristã. O Império romano tinha a base de sua pirâmide na escravidão. Esse mundo de escravidão e de escravos encontrou, no cristianismo, a liberdade da alma, uma certa igualdade dos direitos religiosos com os seus senhores. Percebe-se o valor da liberdade que vem de Jesus Cristo para todo o povo que não podia ter direitos mesmo diante de suas palavras: “A verdade vos libertará” (Jo 8,3).  Os padres em si eram contrários à escravidão.
      O martírio. Esse foi um outro fator que possibilitou a conversão do paganismo ao cristianismo, por parte de muitas pessoas. Diversas são as testemunhas que atraíram pessoas e iniciaram uma nova caminhada de fé. Tertuliano dizia: Semen est sanguis christianorum. “É semente o sangue dos cristãos”.  O martírio era uma ocasião que levava pessoas à conversão, porque trazia sofrimentos e entrega de suas vidas a Jesus. O martírio era visto como uma imitação do fiel a Jesus até às últimas conseqüências pela sua paixão, morte e a esperança na ressurreição.
 3. Pessoas empenhadas na missão
A missão, nos primeiros dois séculos, foi assumida por muitas pessoas, não só por aqueles que tivessem um determinado estudo ou eram enviados pela comunidade apostólica, mas também por pessoas humildes com pouco conhecimento. No entanto, elas não deixavam de divulgar o que aprenderam pelo evangelho de Cristo Jesus.
  O anúncio da fé em Cristo não era algo organizado pela própria Igreja, mesmo porque não podia fazer um controle, seja pela autoridade da Igreja, seja por uma equipe responsável. Se havia grandes mestres livres que tinham discípulos e fundaram Escolas, como Justino em Roma, Panteno, Clemente e Orígenes, em Alexandria, e Tertuliano, no Norte Africano, havia também pregadores itinerantes que assumiam com alegria a missão de propagar o evangelho de Cristo. A Didaqué fala de missionários (apóstolos e profetas), que passavam de comunidade em comunidade, de modo que a comunidade deveria recebê-los bem, como o Senhor Jesus.
Orígenes fala de pessoas que percorriam, não só as cidades, mas também as aldeias e sítios para trazerem as pessoas à piedade de Deus. Elas não realizavam tais coisas para se enriquecer, porque se contentavam com o indispensável, e homens e mulheres partilhavam com o povo das comunidades o que era supérfluo.
    A Igreja da Antioquia florescia e crescia em número; foi ali que, pela primeira vez, os seguidores de Cristo chamaram-se de cristãos (cf. At 11,19-26). Eusébio diz que os apóstolos e os discípulos foram dispersos pela terra inteira por causa do evangelho. Ele fala de alguns deles; Tomé, conforme a tradição, anunciara a Pártia, André a Silícia, João a Ásia, tendo morrido em Éfeso. Pedro pregou aos judeus da diáspora, no Ponto, na Bitínia, na Capadócia e na Ásia (cf. 1 Pd 1,1). Mais tarde fora para Roma, onde recebeu a crucificação de cabeça para baixo, conforme o seu desejo. Paulo propagou o evangelho de Cristo por diversas regiões do mundo e foi martirizado sob Nero.
4. O cristianismo nas diversas regiões do Império
Se a missão aconteceu de uma forma geral, no contexto imperial, essa se encarnou nas diversas regiões e províncias como a Palestina, a Síria, o Egito, o Norte da África, a Itália, a Gália, e a Alemanha. Nesses países, a missão ganhou valor, porque muitos viviam na radicalidade o evangelho, a palavra de Jesus. Dessa forma, o mundo antigo assumiu a doutrina cristã.      
            Conclusão
            A compreensão da missão na Igreja tem o seu sentido em Jesus. Ele é o missionário do Pai. Veio anunciar a todos a misericórdia, o amor divino. Ele convoca todos à fraternidade, ao amor entre as pessoas e povos. Por isso mesmo, ele constitui discípulos e os envia ao mundo para proclamar as verdades sobre a sua pessoa, o Reino de Deus, a vida, o amor do Pai e a alegria do Espírito Santo. A missão cristã, nos primeiros dois séculos, alcançou praticamente os confins do Império, de modo que muitos assumiram a mensagem de Jesus com disposição de espírito. É claro que a missão sofreu, por parte dos seguidores de Jesus Cristo, perseguições, incompreensões, mortes. Porém, ela transformou a vida de muitas pessoas, homens e mulheres, porque encontraram, na mensagem evangélica, a alegria de doar a vida, servir e amar Jesus nas pessoas. A missão de Jesus não pára no tempo, porque vem amparada por Deus Pai e é iluminada pelo Espírito Santo. Ela continua em cada um de nós, na família, na comunidade e na sociedade, para que todas as pessoas sejam discípulas, discípulos, missionárias, missionários de Jesus Cristo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário