quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O paradoxo do ateísmo e a palavra Deus

É preciso para o ateu, se quer ser coerente, abandonar os dois últimos deuses nos quais ele se refugia: o próprio ateísmo e o culto a si próprio. Porque ambos não são ateísmo, são idolatria
Por Paulo Vasconcelos Jacobina
BRASíLIA, 08 de Outubro de 2014 (Zenit.org) - 
“Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”. É assim que o filósofo Wittgenstein conclui a respeito do limite da linguagem quando aplicada àquilo para o que, segundo ele, a linguagem é inadequada: em especial, quando aplicada a Deus. Deus está além das possibilidades da linguagem humana, dizia este filósofo. Deus seria palavra proibida, melhor não usá-la. Mergulhando na vertente da filosofia analítica anglo-saxã, Wittgenstein colocou Deus, para o ser humano, na categoria daquilo que é indizível. E silenciou a muitos. Falar de Deus parece agora uma capitulação, parece a atitude de quem se rende perante o irracional e capitula da ciência. Muitos realmente acreditam que falar de Deus é de muito mau gosto. Melhor silenciar sobre Deus, pensam. Deus seria, como estes filósofos convenceram a tantos, aquilo que impediria o homem de ser autônomo. Uma criação de alguns mais espertos, para a dominação dos outros através dos mecanismos irracionais da religião. Assim, urge – pensam – banir a própria palavra “Deus”.
Mas será que existe, de fato, qualquer silêncio possível perante a questão que se coloca pela própria possibilidade de se pronunciar a palavra “Deus”? O escritor alemão Karl Rahner, S.J., nos lembra da impossibilidade de sequer mencionar o ateísmo sem usar a palavra Deus. A palavra “Deus”está, aliás, incrustada na própria palavra “ateu”. Diz Rahner:
“A palavra 'Deus' existe. Voltamos ao ponto de partida da nossa reflexão, ou seja, ao simples fato de no mundo das palavras, pelas quais construímos nosso mundo e sem as quais mesmo os assim chamados 'fatos' não existem para nós, ocorre também a palavra 'Deus'. Mesmo para o ateu, mesmo para o que declara que Deus está morto, mesmo para eles, como vimos, Deus existe pelo menos como o que eles julgam dever declarar morto e cujo espantalho precisam exorcizar, como aquele cujo retorno temem. Somente quando já não existisse a palavra mesma, ou seja, quando nem sequer se houvesse de colocar a questão acerca dela, somente então é que poderíamos ter sossego quanto a ela. Mas esta palavra continua a existir, tem presente. Terá também futuro? Já Marx pensou que inclusive o ateísmo viria a desaparecer, ou seja, que a própria palavra 'Deus' - em chave afirmativa ou negativa - deixaria de existir. É pensável este futuro da palavra Deus?”
Ou seja, a própria existência do vocábulo “Deus” põe ao ser humano um desafio, que está no limite da sua capacidade de falar. Mas é incontornável. Na verdade, se as toupeiras pudessem falar, certamente não teriam uma palavra para “luz” - mas tampouco teriam necessidade dela, e viveriam para sempre bem felizes em seus buracos obscuros. No dicionário de verdadeiras toupeiras tampouco haveria um vocábulo para a “negação da luz”, algo como “alumismo”, porque se não houvesse sequer a possibilidade, para as toupeiras, de pensar na luz, tampouco haveria a necessidade de negá-la. A palavra “luz” não faria falta num mundo de toupeiras, e o conceito de “alumismo” tampouco. Mas não ocorre assim com a palavra “Deus” no mundo humano.
Se esta palavra não existisse, o homem não mais seria colocado diante do do todo uno da realidade como tal nem diante do todo uno de sua existência como tal. Pois é exatamente isto que faz a palavra “Deus” e somente ela, como quer que soe foneticamente ou como quer que esteja determinada em sua origem. Karl Rahner nos lembra que “Se realmente não existisse a palavra 'Deus', também essas duas coisas não mais existiriam: o todo uno da realidade como tal e o todo uno da existência humana como tal na mútua compenetração dos dois aspectos”. O próprio ser humano, como tal, destruir-se-ia, ao desaparecer a interpelação que a simples palavra “Deus” nos provoca. Se o intento do ateísmo, de banir a própria menção a Deus, se concretizasse, o próprio ateísmo seria banido. As consequências seriam aquelas lembradas pelo próprio Rahner:
“O homem teria esquecido o todo e seu fundamento, e ao mesmo tempo teria esquecido, se é que ainda se poderia falar assim, que se esqueceu. Que seria então? Só poderíamos dizer: ele deixaria de ser homem. Ter-se-ia reduzido a um animal engenhoso. (...) Só podemos dizer que existe homem quando um ser vivo, pensando, usando da palavra e agindo livremente, confronta-se com a totalidade do mundo e da existência como pergunta e problema, mesmo que, ao fazê-lo, possa vir a se manter mudo e desconcertado perante esta pergunta sobre a unidade e a totalidade. Talvez seria até mesmo pensável - e quem poderia saber disso com certeza? - a possibilidade de o gênero humano, mesmo mantendo uma sobrevivência biológica e técnico-racional, vir a morrer de morte coletiva e voltar ao estado de térmitas ou a uma colônia de animais incrivelmente engenhosos. (...) O homem existe propriamente como homem somente quando diz 'Deus' pelo menos como pergunta, pelo menos na forma de pergunta a que se responde negativamente. A morte absoluta da palavra 'Deus', morte que apagasse até mesmo o seu passado, seria o sinal não mais ouvido por ninguém de que o homem mesmo morreu.”
É impossível, portanto, para o ser humano, mencionar de qualquer forma o ateísmo sem reafirmar Deus... Curioso impasse, curioso paradoxo! A solução seria então calar sobre Deus, como quer Wittgenstein?
Calar sobre Deus, no entanto, seria fugir ao dever mais agudo que tem o ser humano: buscar a verdade até o fim, corajosamente, não para se deter onde for conveniente chegar, mas para caminhar até onde a própria verdade nos leva. Buscar um sentido. Um ser humano tem o dever de não se contentar em ser menos que humano, em se transformar em mero bando de aniimais engenhosos. Um ateu corajoso, digno deste nome, não se detém no silêncio, nem se apega a um ateísmo a priori, que, paradoxalmente transformar-se-ia num “deus” para ele, um ídolo a ser defendido e adorado com todas as forças, e contra toda a possibilidade de refutação no diálogo e na razão. Um ateu calado é um idólatra. Um idólatra de si mesmo, porque não vê sequer a necessidade de falar e ouvir. Também um ateu que, mesmo saindo do silêncio para defender o ateísmo, refuta o diálogo racional, para se tornar num militante do próprio ateísmo, também está apaixonado pelo próprio ateísmo, transformou o ateísmo em religião, e é incapaz de seguir até as consequências últimas da busca daquilo que o desafia. É um idólatra ainda pior. Nega o absoluto sem perceber que esta afirmação é, em si mesmo, uma afirmação absoluta – e reintroduz o absoluto exatamente ali onde ele é negado! É preciso, portanto, para o ateu, se quer ser coerente, abandonar os dois últimos deuses nos quais ele se refugia: o próprio ateísmo e o culto a si próprio. Porque ambos não são ateísmo, são idolatria.
Para falar de ateísmo, o ateu precisa, portanto, contrariar a própria máxima de Wittgenstein, e valer-se da palavra “Deus”, que era o que o ateu queria banir em primeiro lugar. Mas é a única maneira de não fechar-se na idolatria. Um verdadeiro ateu precisa ser corajoso: falar é correr riscos, e demanda coerência: quem fala deve conformar conscientemente a própria vida com a verdade que vai descobrindo - esta é a única liberdade. A liberdade que está no limite superior da razão humana que é evocada quando se pronuncia a palavra “Deus”.

A menos, é claro, que se use a palavra “ateu” num plano relativo: sou ateu deste ou daquele deus, porque ele é um falso deus, mas nada posso dizer de modo absoluto quanto a um eventual Deus verdadeiro. Neste caso, não há cristão que não seja ateu de todos os deuses falsos. Aliás, o filósofo Jean Guitton costumava dizer que o mal do nosso tempo não é o ateísmo, mas a credibilidade tola, da qual devemos fugir: só descobriremos o Deus verdadeiro quando formos convictos ateus de todos os falsos deuses.

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