É preciso para o ateu, se quer ser coerente, abandonar os dois
últimos deuses nos quais ele se refugia: o próprio ateísmo e o culto a si
próprio. Porque ambos não são ateísmo, são idolatria
Por Paulo Vasconcelos Jacobina
BRASíLIA, 08 de Outubro de 2014 (Zenit.org) -
“Sobre aquilo que não se pode
falar, deve-se calar”. É assim que o filósofo Wittgenstein conclui a respeito
do limite da linguagem quando aplicada àquilo para o que, segundo ele, a
linguagem é inadequada: em especial, quando aplicada a Deus. Deus está além das
possibilidades da linguagem humana, dizia este filósofo. Deus seria palavra
proibida, melhor não usá-la. Mergulhando na vertente da filosofia analítica
anglo-saxã, Wittgenstein colocou Deus, para o ser humano, na categoria daquilo
que é indizível. E silenciou a muitos. Falar de Deus parece agora uma
capitulação, parece a atitude de quem se rende perante o irracional e capitula
da ciência. Muitos realmente acreditam que falar de Deus é de muito mau gosto.
Melhor silenciar sobre Deus, pensam. Deus seria, como estes filósofos
convenceram a tantos, aquilo que impediria o homem de ser autônomo. Uma criação
de alguns mais espertos, para a dominação dos outros através dos mecanismos irracionais
da religião. Assim, urge – pensam – banir a própria palavra “Deus”.
Mas será que existe, de fato, qualquer silêncio possível perante a
questão que se coloca pela própria possibilidade de se pronunciar a palavra
“Deus”? O escritor alemão Karl Rahner, S.J., nos lembra da impossibilidade de
sequer mencionar o ateísmo sem usar a palavra Deus. A palavra “Deus”está,
aliás, incrustada na própria palavra “ateu”. Diz Rahner:
“A palavra 'Deus' existe. Voltamos ao ponto de partida da nossa
reflexão, ou seja, ao simples fato de no mundo das palavras, pelas quais
construímos nosso mundo e sem as quais mesmo os assim chamados 'fatos' não
existem para nós, ocorre também a palavra 'Deus'. Mesmo para o ateu, mesmo para
o que declara que Deus está morto, mesmo para eles, como vimos, Deus existe
pelo menos como o que eles julgam dever declarar morto e cujo espantalho
precisam exorcizar, como aquele cujo retorno temem. Somente quando já não
existisse a palavra mesma, ou seja, quando nem sequer se houvesse de colocar a
questão acerca dela, somente então é que poderíamos ter sossego quanto a ela.
Mas esta palavra continua a existir, tem presente. Terá também futuro? Já Marx
pensou que inclusive o ateísmo viria a desaparecer, ou seja, que a própria
palavra 'Deus' - em chave afirmativa ou negativa - deixaria de existir. É
pensável este futuro da palavra Deus?”
Ou seja, a própria existência do vocábulo “Deus” põe ao ser humano
um desafio, que está no limite da sua capacidade de falar. Mas é incontornável.
Na verdade, se as toupeiras pudessem falar, certamente não teriam uma palavra
para “luz” - mas tampouco teriam necessidade dela, e viveriam para sempre bem
felizes em seus buracos obscuros. No dicionário de verdadeiras toupeiras
tampouco haveria um vocábulo para a “negação da luz”, algo como “alumismo”,
porque se não houvesse sequer a possibilidade, para as toupeiras, de pensar na
luz, tampouco haveria a necessidade de negá-la. A palavra “luz” não faria falta
num mundo de toupeiras, e o conceito de “alumismo” tampouco. Mas não ocorre
assim com a palavra “Deus” no mundo humano.
Se esta palavra não existisse, o homem não mais seria colocado
diante do do todo uno da realidade como tal nem diante do todo uno de sua
existência como tal. Pois é exatamente isto que faz a palavra “Deus” e somente
ela, como quer que soe foneticamente ou como quer que esteja determinada em sua
origem. Karl Rahner nos lembra que “Se realmente não existisse a palavra
'Deus', também essas duas coisas não mais existiriam: o todo uno da realidade
como tal e o todo uno da existência humana como tal na mútua compenetração dos
dois aspectos”. O próprio ser humano, como tal, destruir-se-ia, ao desaparecer
a interpelação que a simples palavra “Deus” nos provoca. Se o intento do
ateísmo, de banir a própria menção a Deus, se concretizasse, o próprio ateísmo
seria banido. As consequências seriam aquelas lembradas pelo próprio Rahner:
“O homem teria esquecido o todo e seu fundamento, e ao mesmo tempo
teria esquecido, se é que ainda se poderia falar assim, que se esqueceu. Que
seria então? Só poderíamos dizer: ele deixaria de ser homem. Ter-se-ia reduzido
a um animal engenhoso. (...) Só podemos dizer que existe homem quando um ser
vivo, pensando, usando da palavra e agindo livremente, confronta-se com a
totalidade do mundo e da existência como pergunta e problema, mesmo que, ao
fazê-lo, possa vir a se manter mudo e desconcertado perante esta pergunta sobre
a unidade e a totalidade. Talvez seria até mesmo pensável - e quem poderia
saber disso com certeza? - a possibilidade de o gênero humano, mesmo mantendo
uma sobrevivência biológica e técnico-racional, vir a morrer de morte coletiva
e voltar ao estado de térmitas ou a uma colônia de animais incrivelmente
engenhosos. (...) O homem existe propriamente como homem somente quando diz
'Deus' pelo menos como pergunta, pelo menos na forma de pergunta a que se
responde negativamente. A morte absoluta da palavra 'Deus', morte que apagasse
até mesmo o seu passado, seria o sinal não mais ouvido por ninguém de que o
homem mesmo morreu.”
É impossível, portanto, para o ser humano, mencionar de qualquer
forma o ateísmo sem reafirmar Deus... Curioso impasse, curioso paradoxo! A
solução seria então calar sobre Deus, como quer Wittgenstein?
Calar sobre Deus, no entanto, seria fugir ao dever mais agudo que
tem o ser humano: buscar a verdade até o fim, corajosamente, não para se deter
onde for conveniente chegar, mas para caminhar até onde a própria verdade nos
leva. Buscar um sentido. Um ser humano tem o dever de não se contentar em ser
menos que humano, em se transformar em mero bando de aniimais engenhosos. Um
ateu corajoso, digno deste nome, não se detém no silêncio, nem se apega a um
ateísmo a priori, que, paradoxalmente transformar-se-ia num “deus” para ele, um
ídolo a ser defendido e adorado com todas as forças, e contra toda a
possibilidade de refutação no diálogo e na razão. Um ateu calado é um idólatra.
Um idólatra de si mesmo, porque não vê sequer a necessidade de falar e ouvir.
Também um ateu que, mesmo saindo do silêncio para defender o ateísmo, refuta o
diálogo racional, para se tornar num militante do próprio ateísmo, também está
apaixonado pelo próprio ateísmo, transformou o ateísmo em religião, e é incapaz
de seguir até as consequências últimas da busca daquilo que o desafia. É um idólatra
ainda pior. Nega o absoluto sem perceber que esta afirmação é, em si mesmo, uma
afirmação absoluta – e reintroduz o absoluto exatamente ali onde ele é negado!
É preciso, portanto, para o ateu, se quer ser coerente, abandonar os dois
últimos deuses nos quais ele se refugia: o próprio ateísmo e o culto a si
próprio. Porque ambos não são ateísmo, são idolatria.
Para falar de ateísmo, o ateu precisa, portanto, contrariar a
própria máxima de Wittgenstein, e valer-se da palavra “Deus”, que era o que o
ateu queria banir em primeiro lugar. Mas é a única maneira de não fechar-se na
idolatria. Um verdadeiro ateu precisa ser corajoso: falar é correr riscos, e
demanda coerência: quem fala deve conformar conscientemente a própria vida com
a verdade que vai descobrindo - esta é a única liberdade. A liberdade que está
no limite superior da razão humana que é evocada quando se pronuncia a palavra
“Deus”.
A menos, é claro, que se use a palavra “ateu” num plano relativo:
sou ateu deste ou daquele deus, porque ele é um falso deus, mas nada posso
dizer de modo absoluto quanto a um eventual Deus verdadeiro. Neste caso, não há
cristão que não seja ateu de todos os deuses falsos. Aliás, o filósofo Jean
Guitton costumava dizer que o mal do nosso tempo não é o ateísmo, mas a credibilidade
tola, da qual devemos fugir: só descobriremos o Deus verdadeiro quando formos
convictos ateus de todos os falsos deuses.
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