terça-feira, 20 de agosto de 2013

Matrimônio: O Sacramento do Amor à Luz de Deus

Matrimônio: O Sacramento do Amor à Luz de Deus
 Guilherme Schmidt de Lima*

       Nos dias atuais, falar acerca do matrimônio requer a reflexão sobre uma dupla compreensão. Por um lado, tem-se que ‘casar’ se tornou algo tão comum, cotidiano, corriqueiro, e, até mesmo, banal. Por outro lado, muitas pessoas não querem aderir a um compromisso com tamanha proporção, como é o matrimônio, sobretudo quando se trata de realizá-lo na Igreja, como sacramento.
Nesse sentido, nota-se a facilidade com que as pessoas se casam e se separam umas das outras, simplesmente estabelecendo ou desfazendo acordos jurídicos, desde que seja protegida e garantida a felicidade pessoal de cada um dos cônjuges. Nota-se também, o quanto individualista e egoísta pode ser uma pessoa quando esta não assume uma condição matrimonial para pensar exclusivamente em seu bem-estar. Situação ainda pior quando alguém assume uma vida conjugal e se fecha em seus anseios pessoais, descuidando do espaço, da identidade, da personalidade do outro, fazendo da alteridade um meio para sua própria satisfação. O egoísmo de um para o outro pode se tornar ainda mais agressivo quando, em uma relação conjugal, ou seja, entre duas pessoas, ambas se fecham para acolher uma nova vida, isto é, quando o casal não deseja ter filhos e, uma vez tendo-os, não se cogitam as consequências de uma possível separação.
Desse modo, o matrimônio parece estar atrelado a um tipo de pêndulo que varia a todo instante. É fácil assumir compromissos de amor, fidelidade e responsabilidade, ao mesmo instante em que é mais fácil ainda desfazê-los, com o devido cuidado para que ambos saiam beneficiados de um casamento que, simplesmente, não deu certo. Em outra perspectiva, cada vez menos casais assumem uma condição de vida matrimonial por meio do sacramento, pois isto implica em que a Igreja não é a favor do divórcio, causando um desconforto e uma incerteza sobre o que realmente se quer. Então, se pode não dar certo – como pensam muitos casais – melhor que não se tente aventurar em uma realidade esponsal com a benção de Deus. Melhor é ficar com os parâmetros meramente humanos, legais, judiciais. Estes sim garantem uma “dissolução” rápida e prática de um vínculo familiar, favorecendo, ainda, possíveis acordos amigáveis.
Diferentemente de outros tempos, não muito distantes, atualmente é visível uma significativa mudança na escala de valores humanos em relação ao casamento. Antes, poderia se pensar no compromisso, na responsabilidade, na fidelidade, na educação e preservação dos filhos, na garantia de sustento econômico, mesmo que à custa de uma vida feliz feita de aparências aos olhos alheios.
Na contemporaneidade, outros valores ditam a regra. O compromisso é substituído pela liberdade em agir como se quer e se gosta. A responsabilidade é relativizada, pois se assume uma relação a dois, mas não se leva em conta o exercício diário do cultivo da vida conjugal, bem como as obrigações comuns de reciprocidade e cuidado para com os filhos. Na verdade, impera a ideia: “se não der certo, parte-se para outra”. A fidelidade é exposta ao ridículo. Vale a liberdade e o prazer de relações fugazes para sair da rotina. Isto parece o correto e esta mentalidade muitas vezes se choca com a proposta cristã, tratando-se de entender e aceitar o matrimônio como sacramento.
Para tanto, como se trata de uma situação geral, não se pode afirmar que esses novos valores ou contra-valores sejam vividos apenas por pessoas não cristãs, ou que apenas se dizem cristãs. Infelizmente, mesmo os casamentos sacramentados sofrem influência desses fatores de risco.
Tratando-se, pois de uma realidade bastante complexa, isso a nível pessoal, social ou cristão, celebrar o matrimônio como sacramento requer, primeiramente, passar da mentalidade de que a celebração na Igreja é o cume de uma relação que se pretende pautar no amor, na construção de uma família e crescer à luz das promessas feitas de um para outro cônjuge. Necessita-se pensar a celebração sacramental como início e não como fim em si mesmo. É a partir do ato sacramental que duas pessoas se comprometem a viver na condição de ser uma só carne, o que exige, pois, maturidade, dedicação, esforço permanente de um ser para o outro, compreensão, respeito e, sobretudo, diálogo para amenizar e solucionar conflitos.
Desse modo, o matrimônio como realidade sacramental, fundamenta-se em sua riqueza antropológica, ou seja, está intimamente relacionado a toda realidade existencial do ser humano.
 Em primeiro lugar, o sacramento do matrimônio pode ser visto com um fato particularmente e essencialmente pessoal, pois envolve a pessoa em sua forma única de ser, bem como a exige naturalmente que sua existência seja reconfigurada na dinâmica de uma vivência comunal e das exigências e compromissos que dela emanam.
 Em segundo lugar, faz-se necessário compreender o matrimônio como um acontecimento humano interpessoal, haja vista implica a relação do eu com outro eu, otu, que é diferente, tem suas características próprias que o fazem ser o outro e não oeu.  Isto é, casar não significa estabelecer uma relação que proporcione apenas uma realização pessoal, ao contrário, implica em estabelecer uma relação de proximidade e intimidade com o outro. Mais ainda, casar implica em tornar a vida uma constante oferta de si para outrem e, reciprocamente, recebê-lo em sua inteireza, não obstante as fragilidades e limitações dos dois.
Como acontecimento humano interpessoal, o casamento “não fica numa relação periférica ou acidental, simplesmente espiritual ou afetiva, mas que envolve a pessoa inteira: o espírito e o corpo, o amor e a sexualidade, a liberdade e a personalidade” (BOROBIO, 1993, p. 418 – grifo do autor).
Antropologicamente, é também essencial no sacramento do matrimônio a dimensão social. Assim, entende-se que além de colocar o eu em relação com um tu,desta relação emerge o nós, ou seja, cria-se assim, pelos vínculos afetivos implícitos no casamento, uma comunidade de amor, denominada família, a qual irá refletir e repercutir na formação de uma comunidade política e religiosa, ou seja, na experiência concreta de viver em sociedade e na prática da fé comunitária.
Nesse sentido, todas as dimensões humanas são tocadas e afetadas diretamente pela realidade sacramental do dar e receber conjugal: “seu ser, seu ser com os outros, seu ser no mundo, seu ser para com Deus” (BOROBIO, 1993, p. 418).
Considerando esses elementos como fundamentais no sacramento do matrimônio, uma vez que dizem respeito ao todo da pessoa, deve-se ressaltar que vivê-los na dinâmica – por vezes cansativa e frustrante – do cotidiano, implica em empenho. Há que se trabalhar arduamente, com zelo, caridade e paciência para manter a vida matrimonial de forma íntegra, recíproca e inteiramente voltada para Deus. Portanto, há que se compreender que o sacramento do matrimônio não é passe de mágica. Ele é suporte para os ideais que se assumem em comum. 
Compreendendo a estreita ligação existente entre a vida privada do casal e a vida do casal com Deus, há que se esclarecerem os elementos de ordem teológica fundamentais no sacramento do matrimônio.
Convém lançar um olhar sobre a narração bíblica da criação. No livro do Gênesis consta a atitude grandiosa de Deus ao criar a humanidade com o fim de que esta estabeleça relação com as outras criaturas. Cabe ao ser humano, único que tem voz, dar nome aos outros seres. Cabe também à humanidade cuidar, preservar e administrar a obra de Deus. Desse modo, o ser humano, criado de forma qualificada, é chamado a corresponder se relacionando de forma amorosa com o todo da criação.
Um fator importante para esta compreensão é o do ser humano em sua capacidade de estabelecer uma relação interpessoal. Criando-os homem e mulher, Deus favorece um encontro de identidades que interajam e se auxiliem mutuamente. Ser uma só carne significa que ambos serão uma só pessoa, para nesta unidade viverem sua totalidade proporcionada por Deus.
Outro elemento destacável é a ideia do ser humano em sua totalidade relacional, isto é, como ser corpóreo e sexuado. Ser “ossos dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2, 23), significa que Deus favorece a relação humana de modo integral com a finalidade de continuar a gerar vida. Nesta perspectiva, não se pode entender a sexualidade como um acidente, mas sim, como essencial para a doação recíproca acontecer e como algo querido por Deus a fim de que homem e mulher se realizem plenamente um no outro, e ambos em Deus.
Para haver tal encontro, também a narrativa de Gênesis salienta a igualdade e a singularidade como condições básicas dessa integração. Não está determinado que o homem fosse superior à mulher. Ambos participam da mesma humanidade, comungam da mesma “costela” (cf. Gn 2, 21-22) mas cada um com suas peculiaridades, devendo estas ser colocadas a favor da construção de um ideal de vida comum.
Destaca-se na teologia matrimonial do Gênesis que homem e mulher são criados para que, em um encontro de reconhecimento e amor, possam se realizar como humanos na criatividade e procriação. Assim, o matrimônio cumpre sua primeira e fundamental finalidade: a realização plena do ser humano, reconhecendo-se diferente e necessitado de outro. Também na relação a dois, a humanidade recebe a missão de ser criativa, isto é, homem e mulher chamados a cuidar da criação total de Deus, usando-se de seus recursos, do trabalho, da cultura, assim, já se manifesta o caráter procriativo. “Crescei e multiplicai-vos” (Gn 1, 28) significa contribuir com Deus na obra criadora, fazendo da fecundidade um meio de comunhão entre homem, mulher e Deus e de continuação da vida humana, tão estimada por Ele.
            Na compreensão teológica do sacramento do matrimônio presente no livro do Gênesis, consta um fator que pode ser considerado fator-chave da relação matrimonial. Trata-se do encontro como símbolo de uma relação universal e transcendente. Como afirma Borobio (1993, p. 428): “No casal que o Gênesis descreve está simbolizado algo mais do que a relação de um casal”. Da originalidade e naturalidade da vida conjugal, emerge com força um sentido amplo da vida a dois. Esta vida não se limita propriamente ao casal, ela tem um sentido universal, pois o casal inaugural simboliza toda vocação humana ao amor, representando, assim, todos os casais. Desse modo, o compromisso oriundo de uma relação esponsal vai além da comunidade dual e se expande a toda a comunidade universal chamada ao amor. Por isso mesmo, por ter caráter universal, é que o matrimônio se configura também e essencialmente como manifestação de uma realidade transcendente, isto é, de Deus.
            Na experiência cotidiana de viver como “imagem e semelhança” (Gn 1, 26) do Criador, o casal humano concretiza fundamentalmente a relação entre a humanidade e Deus, como seres que se doam reciprocamente em uma dinâmica de amor. Este é um elemento de grande valor para o sentido sacramental: perceber que, na vida do casal, o amor dado e recebido é manifestação da plena e constante entrega amorosa de Deus pelos seus. Entendendo-se assim, na perspectiva transcendental, o amor humano tende a refletir o amor divino:

 “O amor é paciente, o amor é prestativo; não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor 13, 4-7). 
       Para tanto, em uma perspectiva sacramental, enquanto relação amorosa entre duas pessoas humanas, todo matrimônio está fundamentalmente atrelado a uma realidade que o ultrapassa. Não há como separar a vida de um casal da ideia de autodoação de Deus, em sua total entrega amorosa. Este que cria, doa a si mesmo na criação e convida suas mais perfeitas criaturas, porque feitas “à sua imagem e semelhança” (Gn1, 26), ao amor.   
       Deste sentido teológico presente na criação brota com urgência um clamor pela revalorização do sentido sacramental do matrimônio. Embora seja uma realidade evidente e cada vez mais crescente, não se pode negligenciar o sacramento do matrimônio como algo meramente social e fadado ao efêmero.
Casar-se é, não só estar em relação com o outro, mas com o Outro, que é o próprio Deus. Assim, banalizar as relações amorosas, em nome da liberdade individual e do direito de escolher a quem se quer – em meio às trocas – não deixa em nada transparecer a presença amorosa de Deus que cria, se doa, e permanece na mesma constância do amor, sendo este sempre um exercício de cultivo para que possa crescer e frutificar.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BOROBIO, Dionisio (org.). A Celebração na Igreja 2. Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993.* O autor do texto é diácono da Diocese de Uruguaiana e cursa o 4º ano de teologia na FAPAS (Faculdade Palotina). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário