segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Família, Igreja e sociedade







Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)

No Vaticano, o Sínodo dos Bispos realiza sua 3ª assembleia extraordinária, tendo como tema os atuais desafios da família, que interpelam a ação da Igreja. De 5 a 19 de outubro, os 253 participantes, convocados pelo papa Francisco, relatam sobre os desafios familiares de maior relevância nos âmbitos das 114 Conferências Episcopais representadas; participantes de vários organismos da Igreja falam da sua percepção das questões atinentes à família; delegados de outras Igrejas cristãs também presentes.

Além deles, vários casais dos 5 Continentes falam das experiências vividas no casamento e na vida familiar; 38 observadores não-bispos acompanham o desenvolvimento dos trabalhos e 16 especialistas oferecem sua ajuda nas diversas áreas de estudos e ação profissional interessadas nas temáticas familiares. O Papa assiste a tudo, ouve, observa e, no final, recebe indicações da assembleia para as decisões que achar oportunas.
Francisco quis que esta assembleia extraordinária examinasse de maneira mais específica os desafios atuais da família. Hoje há uma percepção compartilhada de que o casamento e a família atravessam uma crise sem precedentes, não apenas nos povos de cultura ocidental, mas também em regiões, onde ainda havia, até recentemente, uma forte cultura favorável à família, como na América Latina e na África.
A crise manifesta-se no elevado número de divórcios e casamentos desfeitos e de casais que convivem sem nenhuma formalização do casamento, nem civil, nem religiosa; impressiona a quantidade dos que rejeitam toda forma de união, vivendo como “singles”. E isso é comum a países da Europa, América e Ásia. Na África, a tendência é a mesma. Além disso, a natalidade caiu de modo significativo na maioria dos países;  nota-se também uma perda de espaço e de relevância social crescente da família.
São notáveis os dramas e as dificuldades enfrentadas pelas famílias nas áreas de guerra e conflitos, de discriminação cultural e religiosa. Um fluxo migratório constante da África, América Latina e Ásia leva as vítimas da pobreza e da violência a tentarem vida melhor em países mais prósperos; nesses casos, as famílias geralmente são dilaceradas e se sujeitam a toda sorte de precariedades e incertezas. Drama muito especial vivem famílias de grupos étnicos e religiosos minoritários da Síria e do Iraque, tendo que  abandonar tudo e fugir para não serem vítimas do grupo fanático que lhes impõe abraçar à força uma fé, que não é a sua, ou morrer. Há também países pobres submetidos a enormes pressões de organizações internacionais para adotarem políticas drásticas de redução da natalidade e de mudança de sua cultura familiar. Há, enfim, um vergonhoso tráfico de pessoas para a exploração sexual, submetidas a regimes degradantes de escravidão.
Também nos países livres e pluralistas, famílias são submetidas a pressões desagregadoras pela sociedade de consumo, o mercado de trabalho, as condições econômicas e sociais sufocantes, que não lhes deixam espaço nem energia para o cultivo da vida familiar minimamente satisfatória. Como pode zelar bem de si uma das muitas famílias das periferias metropolitanas, se os pais precisam sair muito cedo para chegar em tempo no lugar de trabalho e, à noite, chegam em casa mortos de cansados, mal havendo tempo e disposição para trocar algumas palavras ou dar atenção aos filhos? Nessas condições, qual esperança têm os jovens para sonharem com um casamento e uma família feliz?
Não são poucos os dramas e as pressões vividas pelas famílias! Em vários países, entre os quais o Brasil, boa parte das crianças não nasce em famílias constituídas; suas mães, com frequência bem jovens e sem nenhuma segurança social e econômica, vivem a maternidade de maneira heroica e merecem todo respeito e admiração. Porém, essa não é, certamente, a condição ideal para que uma criança venha ao mundo e tenha garantias de um futuro bom.
A preocupação da Igreja com a família, com frequência, é vista como interesse confessional e a partir de questões pontuais: se o divórcio é permitido, se o aborto é aceitável, se os contraceptivos podem ser usados, se os filhos nascidos fora do casamento podem ser batizados, se há casamento entre pessoas do mesmo sexo... Todas essas questões, de fato, merecem a atenção da Igreja. Mas a questão da família é mais profunda e profunda: o Sínodo convocado pela Papa Francisco expressa as suas perplexidades sobre a realidade familiar, enquanto tal. Como será essa família no futuro e quais serão as suas atribuições? Ela ainda será capaz de desempenhar as suas funções em relação à pessoa, à comunidade humana e à própria comunidade religiosa?
A Igreja procura ir ao encontro dos desafios vividos pela família hodierna, socorrendo, amparando, encorajando; a partir de suas convicções de fé em Deus, ela convida as pessoas a conformarem a vida com o Evangelho do reino de Deus. Mas a questão não interessa apenas à Igreja e à religião. De fato, à família está relacionado intimamente o bem da vida social, cultural, econômica e política. A família interessa ao bem da pessoa e da sociedade inteira.
Coloca-se, portanto, a pergunta sobre a atenção que a família recebe da política e dos governantes? Ela não pode ser abandonada a si mesma, ou ao âmbito da vida privada. Por certo, ela está nesse âmbito e representa um espaço fundamental de privacidade e liberdade, não devendo o Estado interferir nela indevidamente. Ao mesmo tempo, porém, o Estado deveria proteger a família e dar-lhe condições para o bom desempenho do seu papel. Se o fizer, sairá ganhando a sociedade e os próprio Estado. Deixando a família no abandono, o Estado e a sociedade colherão muitos problemas.

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