sábado, 23 de agosto de 2014

Laicismo e clericalismo: os dois desafios ao leigo católico na vida política.

Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles nos quais é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de respostas políticas igualmente lícitas
Por Paulo Vasconcelos Jacobina

BRASíLIA, 22 de Agosto de 2014 (Zenit.org) -
 Não é justo que um leigo, ou um grupo de leigos, resolva dissentir publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este, por graça própria, tem por missão específica. Igualmente não é justo que algum leigo seja levado a crer que, para ser um bom católico, tenha que se submeter aos gostos desta ou daquela parte do clero em matéria secular.
A recente história da Igreja tem sido bela para aqueles fiéis que sempre foram chamados de leigos; alçados a um grau de responsabilidade muito alto pelo recente Concílio Vaticano II, que na Constituição Dogmática Lumen Gentium define, pela primeira vez, o leigo a partir de um conceito afirmativo. De fato, se ele era anteriormente definido por exclusão, como “aquele fiel que não recebeu nem o sacramento da Ordem, nem fez profissão de vida religiosa”, agora ele é definido positivamente, na LG 31, como aquele a quem “por vocação própria, compete procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.”
Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles nos quais é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de respostas políticas igualmente lícitas: ou seja, aquilo que se rege pela conveniência, pela oportunidade, pela discricionariedade, pela negociação e acomodação, dentre as várias realidades culturais, históricas e ideológicas que se apresentam na lícita ordenação daquilo que é material, secular, temporal, contingente. Aqui se manifesta a catolicidade da fé, porque no berço maternal da Igreja cabem cristãos leigos das mais diversas matizes políticas, culturais, étnicas e ideológicas, todos igualmente abertos aos ensinamentos da Igreja naquelas matérias que se ordenam com a vida eterna ou a ela se encaminham: os meandros da fé e as definições magisteriais de cunho moral, o que envolve a lei eterna, a lei revelada, a lei natural e a doutrina social que delas decorre. Firmes nestes princípios inegociáveis, os leigos católicos respondem com entusiasmo ao convite eclesial de se envolver cada vez mais profundamente na vida política, pública, social e cultural, para santificar o mundo.
Discernir e ensinar estes assuntos, aqueles nos quais não há espaço para escolhas, pertence propriamente à hierarquia, ao clero, de quem todos os leigos das diversas matizes esperam uma palavra de orientação, de rumo, de abertura e de verdadeira guia. Assuntos como a defesa da vida, da família, da liberdade religiosa e da defesa do bem comum são matéria vinculante para o leigo. E é aqui que os leigos cristãos deparam-se com um grande desafio na vida social, cultural e política: podem encontrar-se perante uma cultura ateia ou agnóstica, ou mesmo violentamente laicista, em que os outros cidadãos não entendem a natureza dessa relação entre o leigo católico e o clero, e o acusam, quando recusa-se a desobedecer ao santo Magistério nestes assuntos, de violar a separação entre a Igreja e o Estado laico, e de não ser mais voz legítima para o debate democrático estatal. É um preço bem alto para alguns, a quem só resta o recurso à escusa de consciência, com seus consectários e inevitáveis prejuízos sociais, econômicos e financeiros pessoais.
Há, no entanto, um problema que ocorre no sentido justamente inverso: é quando os outros membros da Igreja, aqueles que recebem a Sagrada Ordem ou professam votos, sofrem a tentação de invadir a esfera laical e passam a agir politicamente, partidariamente; foi exatamente contra esta tentação que o Papa Francisco alertou na sua primeira homilia como Papa, em 14.03.2013, na Capela Sistina. Ele disse que a Igreja Católica deve se concentrar no Evangelho de Jesus Cristo, caso contrário, corre o risco de se transformar em uma "ONG piedosa". "Se não professamos Jesus Cristo, nos converteremos em uma ONG piedosa, não em uma esposa do Senhor". É claro que em tempos excepcionais, como grandes crises institucionais ou grandes catástrofes naturais, estes limites tornam-se menos claros, mas quando o clero quer impor ao leigo, em nome da obediência religiosa, decisões unilaterais em matérias opináveis, que versam sobre assuntos temporais, seculares, estritamente políticos ou político-partidários, ou vale-se da estrutura eclesial para impor socialmente suas próprias escolhas ideológicas particulares, ainda que a pretexto de “justiça social” ou de “opção pelos pobres”, desobedece à orientação papal citada e, pior que isso, desconfia da própria graça que Deus não pode deixar faltar àqueles que foram legitimamente chamados para isto, os leigos.
Não é justo que um leigo, ou um grupo de leigos, resolva dissentir publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este, por graça própria, tem por missão específica. Igualmente não é justo que algum leigo seja levado a crer que, para ser um bom católico, tenha que se submeter aos gostos desta ou daquela parte do clero em matéria secular. Este é o desvio que a história chama de “clericalismo”: a tendência lamentável de imaginar que os clérigos seriam mais competentes que os leigos católicos no exercício direto do governo daquele campo que, segundo o próprio Magistério, vocacionalmente cabe aos leigos de maneira ordinária.
Por isto, dói no coração dos leigos profundamente comprometidos com Jesus ver, em determinados âmbitos de luta partidária, símbolos eclesiais ao lado de logotipos de ONGs e organizações que, ordinariamente, são exatamente os adversários que os leigos católicos muitas vezes enfrentam para viver com lealdade o seu cristianismo no mundo e santificá-lo a partir de dentro. Lembremos o Papa Francisco: a Igreja não é uma ONG. Exatamente porque é dever do clero corrigir o leigo, na lógica da estrutura eclesial, é muito difícil para o leigo corrigir o clero, quando ultrapassa a fronteira que o próprio clero ensinou existir. É preciso, portanto, que os órgãos hierárquicos e clericais confiem nos leigos católicos, mesmo quando as suas escolhas temporais contrariem as ideologias deste ou daquele ordenado; uma mãe deve demonstrar amor e paciência por todos os filhos, mesmo se muitas vezes, pelas melhores intenções, tem vontade de substituí-lo e caminhar no lugar dele.
E mesmo quando este filho já está com o coração tantas vezes malferido por não pertencer a nenhum dos grupos por quem tantas vezes os documentos eclesiais declaram uma “opção preferencial”, merece ser respeitado no seu direito de reger livremente o que é secular, no âmbito do opinável. Entre o laicismo e o clericalismo, muitas vezes dói mais no coração do leigo cristão sofrer o clericalismo, que o vê como um menor de idade. Mas como diz a bela canção sertaneja de Sérgio Reis, não raro é aquele filho adotivo, sofrido e esquecido, que, embora tendo menos espaço no coração materno, não raro permanece mais leal nos momentos mais difíceis.

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