Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles nos quais é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de respostas políticas igualmente lícitas
Por Paulo Vasconcelos Jacobina
BRASíLIA, 22 de Agosto de 2014 (Zenit.org) -
Não é justo que um leigo, ou um grupo de
leigos, resolva dissentir publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este,
por graça própria, tem por missão específica. Igualmente não é justo que algum
leigo seja levado a crer que, para ser um bom católico, tenha que se submeter
aos gostos desta ou daquela parte do clero em matéria secular.
A recente história da Igreja tem sido bela para aqueles fiéis que sempre
foram chamados de leigos; alçados a um grau de responsabilidade muito alto pelo
recente Concílio Vaticano II, que na Constituição Dogmática Lumen Gentium
define, pela primeira vez, o leigo a partir de um conceito afirmativo. De fato,
se ele era anteriormente definido por exclusão, como “aquele fiel que não
recebeu nem o sacramento da Ordem, nem fez profissão de vida religiosa”, agora
ele é definido positivamente, na LG 31, como aquele a quem “por vocação própria,
compete procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e
ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e
atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as
quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí,
exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para
a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo
manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida,
pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete
especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que
estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e
progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.”
Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles nos quais
é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de respostas políticas
igualmente lícitas: ou seja, aquilo que se rege pela conveniência, pela
oportunidade, pela discricionariedade, pela negociação e acomodação, dentre as
várias realidades culturais, históricas e ideológicas que se apresentam na
lícita ordenação daquilo que é material, secular, temporal, contingente. Aqui se
manifesta a catolicidade da fé, porque no berço maternal da Igreja cabem
cristãos leigos das mais diversas matizes políticas, culturais, étnicas e
ideológicas, todos igualmente abertos aos ensinamentos da Igreja naquelas
matérias que se ordenam com a vida eterna ou a ela se encaminham: os meandros da
fé e as definições magisteriais de cunho moral, o que envolve a lei eterna, a
lei revelada, a lei natural e a doutrina social que delas decorre. Firmes nestes
princípios inegociáveis, os leigos católicos respondem com entusiasmo ao convite
eclesial de se envolver cada vez mais profundamente na vida política, pública,
social e cultural, para santificar o mundo.
Discernir e ensinar estes assuntos, aqueles nos quais não há espaço para
escolhas, pertence propriamente à hierarquia, ao clero, de quem todos os leigos
das diversas matizes esperam uma palavra de orientação, de rumo, de abertura e
de verdadeira guia. Assuntos como a defesa da vida, da família, da liberdade
religiosa e da defesa do bem comum são matéria vinculante para o leigo. E é aqui
que os leigos cristãos deparam-se com um grande desafio na vida social, cultural
e política: podem encontrar-se perante uma cultura ateia ou agnóstica, ou mesmo
violentamente laicista, em que os outros cidadãos não entendem a natureza dessa
relação entre o leigo católico e o clero, e o acusam, quando recusa-se a
desobedecer ao santo Magistério nestes assuntos, de violar a separação entre a
Igreja e o Estado laico, e de não ser mais voz legítima para o debate
democrático estatal. É um preço bem alto para alguns, a quem só resta o recurso
à escusa de consciência, com seus consectários e inevitáveis prejuízos sociais,
econômicos e financeiros pessoais.
Há, no entanto, um problema que ocorre no sentido justamente inverso: é
quando os outros membros da Igreja, aqueles que recebem a Sagrada Ordem ou
professam votos, sofrem a tentação de invadir a esfera laical e passam a agir
politicamente, partidariamente; foi exatamente contra esta tentação que o Papa
Francisco alertou na sua primeira homilia como Papa, em 14.03.2013, na Capela
Sistina. Ele disse que a Igreja Católica deve se concentrar no Evangelho de
Jesus Cristo, caso contrário, corre o risco de se transformar em uma "ONG
piedosa". "Se não professamos Jesus Cristo, nos converteremos em uma ONG
piedosa, não em uma esposa do Senhor". É claro que em tempos excepcionais, como
grandes crises institucionais ou grandes catástrofes naturais, estes limites
tornam-se menos claros, mas quando o clero quer impor ao leigo, em nome da
obediência religiosa, decisões unilaterais em matérias opináveis, que versam
sobre assuntos temporais, seculares, estritamente políticos ou
político-partidários, ou vale-se da estrutura eclesial para impor socialmente
suas próprias escolhas ideológicas particulares, ainda que a pretexto de
“justiça social” ou de “opção pelos pobres”, desobedece à orientação papal
citada e, pior que isso, desconfia da própria graça que Deus não pode deixar
faltar àqueles que foram legitimamente chamados para isto, os leigos.
Não é justo que um leigo, ou um grupo de leigos, resolva dissentir
publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este, por graça própria, tem por
missão específica. Igualmente não é justo que algum leigo seja levado a crer
que, para ser um bom católico, tenha que se submeter aos gostos desta ou daquela
parte do clero em matéria secular. Este é o desvio que a história chama
de “clericalismo”: a tendência lamentável de imaginar que os clérigos seriam
mais competentes que os leigos católicos no exercício direto do governo daquele
campo que, segundo o próprio Magistério, vocacionalmente cabe aos leigos de
maneira ordinária.
Por isto, dói no coração dos leigos profundamente comprometidos com Jesus
ver, em determinados âmbitos de luta partidária, símbolos eclesiais ao lado de
logotipos de ONGs e organizações que, ordinariamente, são exatamente os
adversários que os leigos católicos muitas vezes enfrentam para viver com
lealdade o seu cristianismo no mundo e santificá-lo a partir de dentro.
Lembremos o Papa Francisco: a Igreja não é uma ONG. Exatamente porque é dever do
clero corrigir o leigo, na lógica da estrutura eclesial, é muito difícil para o
leigo corrigir o clero, quando ultrapassa a fronteira que o próprio clero
ensinou existir. É preciso, portanto, que os órgãos hierárquicos e clericais
confiem nos leigos católicos, mesmo quando as suas escolhas temporais contrariem
as ideologias deste ou daquele ordenado; uma mãe deve demonstrar amor e
paciência por todos os filhos, mesmo se muitas vezes, pelas melhores intenções,
tem vontade de substituí-lo e caminhar no lugar dele.
E mesmo quando este filho já está com o coração tantas vezes malferido por
não pertencer a nenhum dos grupos por quem tantas vezes os documentos eclesiais
declaram uma “opção preferencial”, merece ser respeitado no seu direito de reger
livremente o que é secular, no âmbito do opinável. Entre o laicismo e o
clericalismo, muitas vezes dói mais no coração do leigo cristão sofrer o
clericalismo, que o vê como um menor de idade. Mas como diz a bela canção
sertaneja de Sérgio Reis, não raro é aquele filho adotivo, sofrido e esquecido,
que, embora tendo menos espaço no coração materno, não raro permanece mais leal
nos momentos mais difíceis.
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