Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
A Congregação para a Doutrina da Fé, tendo ouvido também o parecer do Pontifício Conselho para Leigos, publicou, em 24 de novembro de 2002, Festa de Cristo Rei, a nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política. O Documento, endereçado aos Bispos e ao povo de Deus em geral, especialmente aos fiéis leigos que se sentem chamados a tomar parte mais diretamente na vida política de seu país, há de ser referência à participação de todo fiel batizado na disputa por cargos eletivos, seja em nível municipal, estadual ou federal.
Hoje, no entanto, queremos rememorar, ainda que de modo bastante genérico, a partir dos princípios da Doutrina (ou Ensino) Social da Igreja e do próprio Código de Direito Canônico, especialmente à luz do cânon 285, a forma de participação da hierarquia da Igreja (diáconos destinados ao presbiterado, sacerdotes e bispos) na política.
Pois bem, enquanto se brada aos quatro ventos a tese relativista desejosa de liquidar a presença do Cristianismo na vida social, deixando aos semeadores do ateísmo e da “cultura da morte” o caminho livre sob o pretexto de que o Estado é Laico e não deve tolerar a presença das pessoas de fé em suas decisões, temos outra postura. A de praticar a política do bem comum. Afinal, um Estado que negue aos que têm fé o direito de participar de suas decisões já não é mais laico, mas, sim, laicista, ou seja, ateu e, por isso, perseguidor da imensa maioria dos homens e mulheres que creem, e, contraditoriamente, favorecedor de uma ditadura minoritária desejosa de impor a todos sua agenda “religiosa ateia” da anti-vida e anti-família.
Portanto, a Igreja não deve se calar nem ser calada, mas se colocar em diálogo com a sociedade na qual está inserida. A hierarquia da Igreja, ou os clérigos (diáconos, sacerdotes e bispos), não deve se envolver em política partidária (das partes) que divide opiniões e a comunidade.
Aos clérigos cabe, pois, a missão de orientar o povo sobre princípios, chamar a atenção das ciladas malignas e ajudar a refletir sobre o atual momento da sociedade. E, ao mesmo tempo, rezar com o povo e pelo povo de Deus, administrar os sacramentos, ouvir, conversar, orientar, sempre visando à salvação eterna de todos os que são a eles confiados em suas paróquias ou dioceses.
Aos leigos compete fazer política no sentido partidário da palavra. Cabe aos fiéis leigos o direito de, à luz do Evangelho, transformar a realidade sociocultural desse mundo, visando o benefício de todos. Bem formados como Igreja, os fiéis leigos darão testemunho de Nosso Senhor Jesus Cristo ao mundo por meio de suas ações políticas, com plena responsabilidade e liberdade, ou seja, atuando como adultos na fé com a responsabilidade de pessoas esclarecidas e preocupadas com o bem comum.
No entanto, também a hierarquia da Igreja tem o dever de se pronunciar sempre que estiverem em jogo pontos de fé e de moral. Sim, pois, se é lícito (e é) ao fiel católico filiar-se, votar ou apoiar partidos políticos ou ainda defender sistemas de governos, nunca é lícito contrariar a fé e a moral da Igreja.
Daí escrever, de modo esclarecedor, o Pe. Dr. José Maria I. Langlois: “A Igreja afirmou sempre que a ordem social faz parte da ordem moral, em que se joga o destino último e sobrenatural do homem sobre a terra. Ela tem, pois, o direito e o dever de fazer ouvir a sua voz quando a sociedade se afasta da reta ordem natural. O Concílio Vaticano II declara que ‘é de justiça que a Igreja possa dar, em qualquer momento e em toda parte, o seu juízo moral, mesmo sobre matérias relativas à ordem política, quando assim o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas, utilizando todos e somente aqueles meios que sejam conformes ao Evangelho e ao bem de todos, segundo a diversidade de tempos e situações’ (Gaudium et Spes, n. 76)”.
E mais: “Os juízos do Magistério eclesiástico sobre matérias políticas e sociais devem basear-se em verdades reveladas, isto é, devem referir-se ao fim sobrenatural do homem. Partindo desta condição, a Igreja tem pleno direito de intervir, mesmo fazendo uso da sua autoridade – dando critérios de ação uniformes aos católicos –, sempre que estejam em jogo os direitos de Deus ou da Igreja, bem como a salvação das almas”.
“Deve rejeitar-se, portanto, o critério laicista de uma pretensa abstenção da Hierarquia em tais matérias, o que reduziria o seu âmbito ao puro e especificamente religioso, como se a religião pudesse separar-se geometricamente das demais dimensões que constituem o homem integral.”
Esta forma de agir da hierarquia da Igreja está longe de cair, como bem alerta o Papa, em querelas político-partidárias causadoras de divisões entre os próprios Bispos e, consequentemente, também em meio aos fiéis desorientados quais ovelhas sem pastor (cf. Mc 6,34). Daí o Código de Direito Canônico em vigor prescrever que “os clérigos são proibidos de assumir cargos públicos que implicam participação no poder civil” (cân. 285 § 3) pelas razões já apontadas.
Aqui se entende por poder civil, segundo o Pe. Dr. Jésus Hortal, SJ, tanto o poder legislativo quanto o executivo e o judiciário, mas deve – para caracterizar tal poder – ser verdadeiro poder público em nível federal, estadual ou municipal e não de qualquer cargo público em sociedades privadas, mas que prestam serviços à população. Contudo, importa frisar que, no Brasil, não há proibição pontifícia oficial aos clérigos de tomarem parte em cargos político-administrativos. Por isso, bastaria ao interessado uma licença superior para ser candidato a um cargo no executivo ou no legislativo.
Neste caso, ele se afastaria das funções clericais e disputaria a eleição, depois, dependendo do juízo do seu ordinário, voltaria às funções eclesiásticas, logo terminasse seu mandato político. No entanto, o próprio Código em si e seus comentaristas veem muito mais inconvenientes do que vantagens nessa intromissão de clérigos em um campo que a Igreja tem como específico aos leigos bem formados, segundo sua Doutrina Social.
É algo, portanto, que tem solução teórica, mas, na prática, se revela quase inviável, dado que a missão do Bispo ou do Sacerdote é a de unir o povo e não dividi-lo em partidos, especialmente no campo político, no qual as discussões sobre os poderes temporais são muito amplas e propensas, por essa mesma razão, a ser mais causa de divisão e afastamento dos pastores entre si e dos pastores com suas ovelhas.
A Igreja, mãe carinhosa e solícita, não é, no entanto, omissa para com a vida temporal de seus filhos, deixando-os à mercê de poderes corruptos ou voltados a interesses escusos em vez de legislarem pelo bem comum. Por isso prevê que, em casos muito especiais nos quais a decadência entre os leigos seja tão grande, um ou mais clérigos possam, a juízo da autoridade eclesiástica, se candidatar para cargos públicos, a fim de salvaguardar os direitos da Igreja e a preservação do bem comum (cf. Doc. de Puebla n. 526s; Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal. Congregação para a Educação Católica, 30/12/1988, n. 63, nota 140).
Estes são casos muito raros e em momentos extremamente delicados, que não devem tornar-se praxe comum em qualquer circunstância na qual se julgue que a vida social está em perigo, dado que a função dos Bispos e Sacerdotes é a de formar bons leigos, homens e mulheres, para o engajamento político pelo bem da nação nas várias esferas de poder. Porém, ao fiel leigo essa responsabilidade é entregue para que, bem formado em sua consciência e vivendo sua fé, contribua para uma reforma política saudável e para o bem comum.
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