quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Doutrina Social da Igreja e Política








Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Estamos em tempos de discussão sobre propostas para o futuro do país, e seria interessante debruçar sobre algumas afirmações da questão social. Convido-os, portanto, a algumas reflexões acerca deste importante assunto.  
Sobre a questão “Igreja e Política”, importa, de início, nos debruçarmos sobre as bases da Doutrina Social da Igreja (DSI), hoje também chamada de Ensino Social da Igreja. Iremos utilizar textos do renomado teólogo brasileiro do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, Dom Estevão Bettencourt, OSB, em seu curso sobre o assunto publicado pela Escola Mater Ecclesiae, de nossa Arquidiocese.  
Entende-se por Doutrina Social da Igreja o conjunto de verdades ou proposições deduzidas a partir da Lei Natural Moral e da Revelação Divina e aplicadas pelo Magistério da Igreja aos problemas sociais de nosso tempo, a fim de ajudar o povo em geral e os governantes ou legisladores, em especial, a organizarem uma sociedade mais humana e, por conseguinte, fraterna, segundo os desígnios de Deus.  
A DSI tem duas fontes: a Lei Natural Moral e a Revelação Divina, contida na Escritura e na Tradição Oral, que berçou a própria Bíblia e a acompanha ao longo do tempo.  
A Lei Natural Moral decorre da própria ordem estabelecida por Deus para ser fundamento da conduta do indivíduo e da sociedade. Importa dizer que a Lei Natural se divide em física e moral. A física impõe ao ser humano que não se pode comer pedras, respirar gás carbônico, tomar veneno como se fosse água etc. Já a moral diz ao ser humano que não lhe é lícito abusar da comida, da bebida, do sexo etc.  
É da Lei Natural Moral que vamos tratar aqui, uma vez que é reconhecida, (embora às vezes abafada ideologicamente em alguns regimes) por todos os povos e culturas em todos os tempos da história como ponto de encontro natural dos homens com Deus e consigo mesmo. Daí, dizer o Papa Pio XII que “a Igreja afirma o valor do que é humano e conforme a natureza; sem hesitar, procura desenvolvê-lo e pô-lo em relevo. Não admite que, perante Deus, o homem seja apenas corrupção e pecado. Ao contrário, aos seus olhos o pecado original não afetou intimamente as suas aptidões e as forças, tendo até deixado essencialmente intactas a luz natural da sua inteligência e a sua liberdade”. (Discurso aos membros do Congresso de Estudos Humanísticos, 25/09/1949).  
Vê-se, assim, que a Doutrina Social da Igreja, fundamentada em princípios da Lei Natural Moral, não se volta apenas aos católicos, mas também a todos os homens e mulheres de boa vontade que se guiam apenas pelas luzes da razão e não da fé ou de um credo específico. Por essa razão, nem o Estado que se diz laico, leigo, aconfessional está isento de ouvir a palavra da DSI ao promulgar suas leis. Sim, pois as leis positivas humanas devem ser eco da Lei Natural Moral presente na natureza humana, caso contrário, tal lei humana não favorecerá a verdadeira vida e dignidade humanas.  
O que acabamos de afirmar se acha bem explicitado no Documento da Congregação para a Educação Católica sobre o estudo da Doutrina Social da Igreja, dizendo que ela “assume, reclama e explica vários princípios éticos fundamentais de caráter racional, mostrando a coerência entre os dados revelados e os princípios da reta razão, reguladores dos atos humanos no campo da vida social e política. Daí deriva a necessidade de recorrer à reflexão filosófica para aprofundar tais conceitos como, por exemplo, a objetividade da verdade, da realidade, do valor da pessoa humana... e para os explicar à luz das últimas causas” (n. 9).
Importa, porém, que tais reflexões filosóficas, feitas a partir de dados das ciências experimentais, não estejam recheadas de ideologias deturpadoras da verdade, como pode acontecer, especialmente com um certo tipo das ciências sociais nos nossos dias.
Outro alicerce da Doutrina Social da Igreja é a Revelação Divina contida na Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento) e na Tradição Oral interpretada à luz do Magistério da Igreja assistido pelo Divino Espírito Santo.
Ora, a Revelação não abafa nem extingue as verdades e as leis naturais, mas as ilumina com nova claridade. Faz-nos ver o ser humano não como elemento anônimo no mundo, mas, ao contrário, ensina que ele é imagem e semelhança de Deus, cuja dignidade foi elevada pela filiação divina ou pela Encarnação do Filho de Deus, que fez todos os homens irmãos entre si e chamados à herança celeste.
Certo é que a DSI não tem por tarefa dar respostas práticas específicas para cada um dos grandes problemas da humanidade, nem ser uma terceira via entre o capitalismo selvagem e o coletivismo marxista antinatural, mas, sim, quer propor diretrizes e princípios éticos que devem perpassar qualquer sistema sócio-econômico ou político, a fim de que tais sistemas respeitem a dignidade humana, espelho da Majestade Divina, conforme ensinou São João Paulo II na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis n. 41.
Mesmo com esses dados expostos, é inegável a existência de uma ideologia segundo a qual a Igreja não deveria se manifestar sobre temas de ordem profana, como são a economia e a política. Ela deveria se contentar no culto dentro dos templos sem se envolver na vida social, dizem os arautos da “ditadura do relativismo”, tão denunciada pelo Papa Emérito Bento XVI.  
A essa objeção, devemos responder que, como cidadãos, os cristãos têm o dever de manifestar a sua opinião e, ao mesmo tempo, a Igreja, enquanto instituição, se interessa pela dimensão ética da economia e da política, não por seus aspectos técnicos que competem aos especialistas dessas áreas. Afinal, todo e qualquer ato humano tem sua dimensão ética, dado que é executado em vista de um Fim Supremo adequado (logo, moralmente, bom ou mau) e, por isso, requer orientações.  
A Igreja, ciente da união do ser humano com Cristo, de quem nos vêm auxílios preciosos, não se cansa de ensinar que “As alegrias, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são, também, as alegrias, as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não ressoe no seu coração” (Gaudium et Spes, n. 1).
Daí, a utilidade de que a Igreja, dentro da missão que lhe cabe, fale de Política sempre que for necessário, de modo que clérigos e leigos estejam aptos, à luz da Doutrina Social da Igreja, a se posicionarem sobre o assunto, depois de serem devidamente preparados, conforme já pediu São João XXIII na Encíclica Mater et Magistra, ao escrever que “hoje, mais do que nunca, é indispensável que esta doutrina seja conhecida, assimilada, traduzida na realidade social sob as formas e na medida em que as diversas situações o permitam ou exijam... Insistimos em que se inclua este ensino em cursos ordinários de forma sistemática em todos os Seminários e em todas as escolas católicas, em todos os graus de ensino. Deve, além disso, ser inscrita no programa de instrução religiosa das paróquias e dos agrupamentos de apostolado leigo. Deve ser propagada por todos os meios modernos de difusão: imprensa cotidiana e periódica, obras de vulgarização ou de caráter científico, rádio-difusão, televisão...” (n. 222).  
É à luz desses princípios que somos chamados a refletir o que nos pede o magistério da Igreja, dentro do que nos compete, da relação Igreja e Política, especialmente neste ano em nosso país, nação de tantas riquezas naturais, mas, paradoxalmente, também de tantos problemas a serem trabalhados por todos nós que nos interessamos por dias melhores.

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