sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Exegese Patrística até o século IV


Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)

Introdução
Uma análise da exegese nos padres da Igreja até o século IV faz-se necessária para os tempos modernos uma vez que essa não dispunha dos métodos que hoje a leitura dos textos coloca, pois a visão total da Sagrada Escritura nem sempre estava presente aos olhos dos autores cristãos. Nesses primeiros séculos a posse de uma inteira Bíblia como nos tempos atuais era possível para pouquíssimas pessoas. Os exegetas recorriam nas bibliotecas à ajuda da memória e o uso das testemunhas as quais faziam coletas de passos da Sagrada Escritura, reagrupados por categorias temáticas.
No século II delineavam-se alguns problemas para os padres, exegetas pastores entre os quais este: Que coisa serve o AT, do momento que a lei foi suprimida? Entre as soluções extremistas desta pergunta encontramos aquela dos gnósticos (o AT é obra do Deus criador), de Marcião (o AT é obra do Deus justo), dos maniqueus (o AT é um livro mau). Diversos padres da Igreja apresentaram soluções diante dos grupos acima citados: por exemplo, Justino apostou muito sobre o esquema promessa-cumprimento no sentido de que Cristo cumpriu as promessas do AT. Dessa forma o Verbo, que criou o mundo, falou de si mesmo no AT. Tertuliano, Orígenes e Ireneu de Lião colocarão a necessidade da leitura do AT sempre em referência ao NT. Para esses autores, com o termo Sagradas Escrituras se entendia somente o AT, do qual se tirava toda a instrução, submetendo o texto a interpretações alegóricas, literais e tipológicas numa leitura sempre em ligação ao Novo Testamento também considerado Sagrada Escritura.
1. Justino
Foi um dos primeiros a dar normas de interpretação bíblica. Na obra: Diálogo com Trifão, Justino apresenta um debate entre um cristão e um hebreu. Os seus métodos de leitura do AT são completamente diversos; o êxito do Diálogo é de igualdade pois, cada um permanece sobre as próprias posições.
Justino afirma uma nova lei que vem da pessoa de Jesus Cristo, o Verbo encarnado. Toda a profecia compreende um sinal(fatos, palavras) e um sentido que é sempre Jesus Cristo. O profeta por excelência é o Verbo de Deus, predizendo aquilo que aconteceria com a sua encarnação, com a qual a Palavra tornou-se sinal completo.

2. Tertuliano
Tertuliano formulou uma a exegese bíblica cumpridora de um valor essencial no âmbito do cristianismo ocidental. Ele coloca alguns critérios de interpretação:
- A Escritura com a Escritura: esse era um critério típico das obras gramaticais da antigüidade do qual era também válido para Tertuliano; - Qualquer trecho bíblico deve estar em sintonia com os outros trechos.
A interpretação exegética de Tertuliano é literária(De Resurrectione Carnis), um tratado no qual o autor africano polemiza as interpretações alegóricas dos gnósticos a respeito da ressurreição da carne porque estes a negavam. Tertuliano vê a ressurreição como uma verdade fé, que consistirá na reconstituição da carne humana, transformada conforme a nova realidade, espiritual, sobrenatural. Para Tertuliano Adão é figura de Cristo(cf. 1Cor 15,45).
3. Ireneu de Lião
Este autor também deu normas para a interpretação da Sagrada Escritura. No Livro: Contra os Gnósticos, Ireneu demonstra que tem um só Deus, autor seja do AT que do NT, isto é o Verbo de Deus. "Estas são as verdades fundamentais anunciadas pelo Evangelho: um só Deus criador deste universo, que foi anunciado pelos profetas que deu a economia da lei por meio de Moisés, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, fora do qual não conhece outro Deus ou outro Pai" (III, 11,7).
Ireneu determina também como Tertuliano, algumas regras para interpretação bíblica: - Uma frase se interpreta no seu contexto; - ela deve ser interpretada no sentido da regula fidei, a regra da fé, transmitida pela tradição. O centro da sua teologia bíblica é a recapitulação de tudo em Cristo sendo que a interpretação da Sagrada Escritura não é exercício acadêmico, antes ela é uma preparação ao martírio.
4. As duas escolas exegéticas: a Alexandrina e a Antioquena
A nossa análise patrística levam em conta as exegeses praticadas em duas escolas as quais determinaram o pensamento exegético nos séculos posteriores.
Em primeiro lugar analisemos a exegese alexandrina. Nós encontramos como autor importante Orígenes. Ele fez da hermenêutica bíblica uma verdadeira ciência e condicionou toda a exegese sucessiva bem como os seus adversários. Ele é o mestre da alegoria. Ele não se limita a considerar a Escritura como livro divinamente inspirado do Espírito Santo, mas enquanto palavra divina a identifica com Cristo, isto é o Logos. A Sagrada Escritura é a permanente encarnação do Verbo de Deus.
A Sagrada Escritura além do sentido literal dá um sentido espiritual mais profundo que não se consegue captar. Cristo é a chave para interpretar as Escrituras(cf. Contra Celso, 7,11), cuja presença no texto sagrado é o mais das vezes escondida debaixo do véu da leitura. O sentido espiritual das Escrituras identifica-se com o sentido cristológico. Cristo iluminou a Lei e tirou o véu que a cobria(cf. 2Cor 3,14), revelando os seus esplendores.
Ele propôs três visões dos sentidos da Escritura em ligação profunda com a concepção paulina do homem, em Espírito, alma e corpo(cf. 1Ts 5,9). - Os simples, através da leitura; - Os progressivos, pelo sentido moral; - Os perfeitos pelo sentido espiritual.
Nesta escola temos também Clemente de Alexandria. Ele considera a Sagrada Escritura como a voz mesma do Logos divino. Sobre as bases de Filão, diz que toda a palavra escrita tem um fim preciso e que este pode ser escondido sobre o princípio da distinção entre cristãos simples e perfeitos(gnósticos). Clemente valoriza a tipologia tradicional, para se confrontar ao gnosticismo, ao afirmar a unidade dos dois Testamentos e propõe o conceito de revelação progressiva, segundo o qual a vinda do Salvador ocorreu com a origem do mundo, preparado depois pela Lei, pelos profetas e em fim pela presença do Precursor, João Batista.
Em segundo lugar nós temos a exegese antioquena. Esta primou pelo sentido literal da Sagrada Escritura, isto é pela explicação do Antigo Testamento pelo próprio texto, o Antigo Testamento. Ela surgiu em contraposição à escola alexandrina, que valorizava o sentido alegórico.
Os antioquenos formaram outra escola com o fim de contestar os alexandrinos porque havia o perigo de reduzir toda a Bíblia a uma profecia, ou textos proféticos que não o eram no seu sentido histórico original. O caráter desta exegese foi a contraposição de um decisivo literalísmo ao alegorísmo alexandrino. Se os autores alexandrinos interpretavam alegoricamente o AT para encontrar ali a antecipação profética e simbólica de Cristo e da Igreja, os literais antioquenos com o seu literalísmo renunciavam a esta finalidade. Nós encontramos autores nesta escola como Teófilo de Antioquia, Deodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Esses autores procuraram somente dizer o que é desejado pelo autor inspirado.
Ainda que as duas escolas tivessem pontos de vista exegéticos diferentes no fundo elas queriam interpretar o mistério de Cristo presente no AT e revelado no NT a fim de que as pessoas e as comunidades cristãs vivenciassem a Palavra de Deus na sua integridade diante da realidade familiar, social, política e econômica do Império Romano.

5. A formação do Cânon da Sagrada Escritura do AT e do NT
A nossa análise a respeito da exegese patrística dos primeiros quatro séculos tem presentes também a formação do Cânon, a lista dos livros sagrados seja do AT, seja do NT. Uma teoria clássica até os tempos modernos dizia que no primeiro século os hebreus tinham dois cânones; um proveniente da Palestina(mais breve) e outro alexandrino (mais longo, o qual compreendia os livros deuterocanônicos). Na realidade, hoje sabemos que não existiam dois cânones hebraicos, porque no primeiro século os hebreus não tinham fechado o cânon e existiam muitos livros candidatos para entrar na lista dos livros inspirados. Isto deveria realizar-se sem dificuldades se não fosse o desencontro dos cristãos com os gnósticos que levou os judeus a fixar a sua lista de livros sagrados. Naquilo que se refere aos Padres da Igreja, notamos que estes usaram sem problemas os deuterocanônicos até o momento em que estes foram em uso também pelos hebreus(ainda que não oficialmente). Quando estes últimos, no segundo século, os rejeitaram completamente, os Padres foram obrigados a usá-los, na polêmica contra o judaísmo, só os livros condivididos também pelos hebreus. Por isto a aceitação dos deuterocanônicos pela comunidade cristã não se fundamentou sobre a autoridade da sinagoga, antes sobre aquela litúrgica da Igreja.
No segundo século circulavam muitos livros entre as comunidades dizendo-se inspirados ou levavam o nome de algum apóstolo; só alguns destes(27) foram incluídos no cânon do NT, vindo a assumir a mesma autoridade do AT. A seguir são colocados os critérios de escolha que a Igreja levou em consideração para afirmar se um determinado livro era ou não inspirado: apostolicidade, leitura pública litúrgica, leitura pública litúrgica universal e ortodoxia.
Conclusão
A exegese nos Padres da Igreja possibilitou a leitura do mistério teológico em função do cristológico tendo presente o AT e o NT na sua unidade. O Antigo Testamento era lido em comunhão com o Novo Testamento porque era Sagrada Escritura. Para os Padres da Igreja, Cristo Jesus é a realização das promessas feitas no AT. Esta exegese iluminou a vida do povo através das homílias de seus pastores na formação do povo cristão, católico, mas sobretudo, na liturgia eucarística. O mês bíblico nos ajude a ler a Sagrada Escritura como a Palavra de Deus Uno e Trino que guia os nossos passos para sermos discípulos, discípulas, missionários, missionárias de Jesus Cristo no mundo de hoje e em nossas comunidades, paróquias e dioceses.
Bibliografia geral: 
Simonetti, M. Lettera e/o allegoria. SEA, 23, Roma, 1988.
Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Vozes, Petrópolis, 2002.

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